Um jovem de 90 anos - Kronenhalle, Zürich



Discretos, eficientes e de andar lampeiro, os criados de Downton Abbey circulam pelos salões da propriedade colossal, com seus uniformes em preto e branco. Réchauds, salvas de prata, trinchadores e outros elementos do início do século passado, desfilam pelo seriado num lindo balé que encantou meus olhos de restauratrice.

Na vida real, uma outra restauratrice, Hulda Zumsteg, compra um hotel à beira da falência em 1924 numa região nobre de Zürich, e o transforma no Kronenhalle, um restaurante de sucessivos salões em madeira, inspirado nas brasseries da Alsácia. 

Um chef da Bavária garantiu o respeito pela cozinha, mas um aspecto adicional lhe deu fama: o filho de Hulda, Gustav, era um dos maiores comerciantes de seda do País e, por acaso, fornecedor de Yves Saint Laurent. Tornou-se, então, um ponto de encontro do mundo da moda e também da tribo das artes, graças à crescente coleção de Gustav, com nada menos que originais de Chagall, Braque, Miró, Giacometti, Rodin e outros, paramentando o salão.

Com a morte de Gustav, em 2005, o local se torna uma fundação da família e, mais importante: mantém-se um excelente restaurante.

Esbarrei com a memória de Hulda em pleno Outono suíço, na temporada de caça aos veados. Os salões austeros e distintos, seguiam abarrotados, 90 anos depois. 


Uma versão da criada de Downton Abbey se materializou na pessoa da minha garçonete, de eficientes olhos claros e uniforme branco e preto, a recomendar os ingredientes da estação.

A salada de beterrabas com raiz forte estava extremamente ácida e foi esquecida ao primeiro gole do pinot noir do Valais que roubou minha atenção. Enquanto bebia, percebi que o salão parara nos anos 20, na figura dos réchauds com batatas rösti de proporções épicas, nos fogareiros que aqueciam os molhos em panelas de cobre, e na salva de prata que estava prestes a receber meu veado.

A escudeira-trinchante fatiou a carne macia, juntando as mini-pêras cozidas, algumas castanhas apanhadas com a pinça, um bom punhado de repolho roxo com canela e vinho tinto, maçãs e um outro tanto de spätzli pra contrabalançar.


Há quem diga que a montagem do prato é rudimentar, mas confesso que sinto imensa falta desta simplicidade hoje em dia. A primeira dentada, inesquecível, se deu apenas com o peso do maxilar, e foi suficiente para rasgar a carne mais macia que já comi. 

Devorei tudo de olhos fechados, como quem teme o final, abrindo um olho de vez em quando, somente para espiar o Chagall na parede. Quando terminei, outra porção de igual tamanho me esperava, aquecida no fogareiro. Se a coragem arrefecia, entornava um pouco mais do caldo denso sobre as maçãs recém chegadas, juntava um naco de carne e seguia.

Terminei a refeição com os tradicionais "huppen", wafers típicos da Suíça, enrolados a mão, e ainda um punhado de chocolates tão amargos quanto inesquecíveis. 

Assim como no seriado da TV, o passado - quanto mais distante - tem originalidade cativante. Saí do túnel do tempo revigorada, pensando na falta que faz um pouco mais de ontem no meu hoje. 





















KRONENHALLE 
www.kronenhalle.ch
Rämistrasse 4, Zurique
 +41 44 262 99 00

diariamente das 12:00 à meia-noite
bar, diariamente das 11:30 à meia-noite


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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.