Esperança à mesa.


[texto feito especialmente para a Revista da Livraria da Travessa]

Desde tempos remotos, e com o mesmo encantamento da primeira vez, o homem admira o comportamento migratório das aves, na forma daquela flecha mágica nos céus, que aponta para o início ou fim de “algo”. Ao primeiro sinal da escassez de alimentos, os pássaros migravam, levando consigo o Sol, tornando as noites mais longas e trazendo o frio.

A época da migração representava, por um lado, o fim do árduo trabalho de colheita realizado no ano, e levava a uma grande celebração. De outro lado, no entanto, significava a incerteza da volta do Sol e da brotação das sementes. Abater uma ave migratória era, portanto, uma prece pela renovação.

Há inúmeros rituais pagãos em que um ganso é abatido no fim da colheita e início do Inverno, desde o Samhain celta, até o Yule germânico; dos povos da Ásia Central, até os índios norte americanos e os berberes do Atlas. Na noite mais longa do ano, ingerir uma ave era como tentar ingerir o Sol e aguardar, gradativamente, as noites diminuírem e a esperança aumentar.

As celebrações pagãs em torno dos belos “intermediários” do céu e da terra, que levavam e traziam as Estações do ano, viraram datas religiosas na Igreja Católica. O dia do solstício de Inverno no hemisfério norte (em torno de 22 de dezembro) acabou por se associar ao Natal.  Já o dia associado a São Martinho (11 de novembro) anteriormente marcava o fim da colheita e o dia em que o primeiro vinho feito a partir das uvas colhidas poderia ser provado. Mais uma vez, um ritual agrícola de renovação.

Com a colonização norte americana, uma ave nativa substitui o ganso: o peru. Dado o custo mais barato e a introdução da novidade vinda da colônia, foi levado à Europa e passou a “pagar o pato” – com o perdão do trocadilho.


Por fim, a celebração chega ao Brasil, herdada de Portugal. E cá estamos nós, nessa sucessão de renovações: de rituais pagãos a religiosos, do hemisfério Norte ao Sul, de Verão em lugar do Inverno e de peru em lugar de ganso. E por quê? Porque não importa o nome da festa: plantar é preciso; colher e comer, também; celebrar é fundamental; ter esperança é vital. Renovação é natural. Renovação é Natal.

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.