Puxa, Quito, eu não te esperava...



Era impossível não olhar para o casal septuagenário coloridíssimo, de feições indígenas e sulcos profundos na pele, tentando passar despercebido na sala de embarque do Aeroporto de Tocumen, no Panamá. 


A senhora redondinha e encantadora vinha com brincos compridos de prata, chapéu coco branco circundado por fita preta, saia fúcsia longa (bem armada com várias anáguas) que terminava numa barra grossa bordada com flores. Do broche, pregado no poncho preto, pendia uma pequena faixa azul cobalto. Ele, sóbrio e elegantíssimo, tinha trança espichando pelas costas e usava o mesmo chapéu coco, que rimava com um casaco branco e preto de lã com motivos geométricos sob o poncho vermelho. Eram muito imponentes, apesar de não chegarem a 1,40m de altura, a estatura média dos ameríndios da região. Embarcaríamos juntos para o Equador. 


Tive um professor de geografia que falava de Quito com imenso carinho e me dei conta que, no intervalo aparentemente infinito entre meus 13 anos e agora, pouco ouvi falar da capital. Me pergunto por quê.


O que não esperava? Tudo. 


As coisas simples me impressionavam em camadas, como a anágua daquela senhora: os taxistas eram muito bem treinados, falavam maravilhas da cidade e sabiam explicar cada ponto turístico. Não havia um papel jogado no chão em todo o Centro Histórico, me senti absolutamente segura e as igrejas barrocas (ponho aqui um suspiro) eram esplendorosas. 


Não à toa, Quito foi a primeira cidade no mundo a receber o título de Patrimônio da Unesco, há 40 anos. E eu nunca soube disso.


Ao passear pelas ruas, vi centenas de versões do casal vindas de todas as regiões rurais do país, com seus chapéus, cintos e vestes distintos, em cantorias como: “Mandarinaaaas! Un dolaaaar! Naranjitaaas!”. Vendiam alimentos, couro, artesanato ou faziam música. Era encantador. A julgar pelo colorido – aprendi mais tarde – os parceiros de voo seriam do povo Cañar, um cantão a 400km ao Sul da capital. No meu bolso, um dólar equatoriano inspirado na cena mais típica das ruas: a figura de uma indígena da tribo Shoshón com um bebê nas costas. 


Nas cidades amuralhadas espanholas, “la ronda” era o beco que separava as casas da fortificação. Quito nunca foi cercada, mas em torno de 1580, os espanhóis começaram a chamar a rua que corria ao longo do barranco Hullaguangahuaico (diga isso sem gaguejar) de La Ronda. Hoje, é o trecho mais boêmio de Quito, com bares, restaurantes, artesãos de rua, lojinhas e casas de música ao vivo. Tem o mesmo jeitão do fim do século 18, quando indígenas, mestiços e espanhóis construíram suas casas. Separe uma noite e passeie por lá.


Apesar do Brasil ser o maior produtor e ainda o maior consumidor de café no mundo, o conhecimento médio do quiteño parece ser maior que o nosso. Há cafeterias excelentes e o chocolate em qualquer birosca é excepcional. 


No mundo dos vinhos, no entanto, a cena lembra o Brasil dos anos 90, graças aos impostos de importação absurdos. Uma cachaça, por exemplo, entra com 260% de impostos. Não achei rótulos orgânicos, biodinâmicos ou naturais em qualquer restaurante, moderninho ou não, e os convencionais, em esmagadora maioria, são de produtores tradicionais do Chile, Argentina, Espanha e França. Aliás, por motivo que ainda não investiguei, a França tem um papel marcante na gastronomia equatoriana. Com raríssimas exceções, os restaurantes mais premiados têm cozinha francesa bem tradicional, com ingredientes locais (que eu tanto queria conhecer) colocados timidamente aqui e ali. 


Foi numa zona residencial tranquila que engoli, finalmente, uma verdadeira aula de produtos de excelência do Equador. Sem dúvida, uma das melhores refeições do último par de anos, no Quitu Identidad Culinaria, do chef Juan Sebastián Perez.



Pedi licença à senhora que vendia frutas, folhas e legumes, junto à entrada. Já no interior do restaurante, aprendi que a banca de agricultores montada na frente da casa é que pauta o menu do dia (que nunca é encomendado). Com o que trazem, o chef prepara duas sequências, de 5 ou 7 pratos. 


O gole de boas vindas é catado num vaso imenso estacionado no meio da sala, com uma concha. É a chicha, bebida indígena ancestral, fermentada na casa a partir de 7 tipos de milho, cana de açúcar e ervas. 


Havia um lindo pão de ‘maiz morado’ (um milho roxo, quase negro) com sabor presente de chicha e molho refrescante de lavanda, menta e o típico cedrón (erva lúcia-lima). Me encantei com os llapingachos de entrada (uma tortilla, típica comida de rua equatoriana) feita ali com batatas poéticas andinas – a de coração vermelho e a de coração negro – com queijo fresco. 


Dos pratos, ainda salivo com o pargo que vi assarem no forno a lenha – na cozinha aberta para o salão – feito com azedinha, beterrabas caramelizadas no mesmo forno e um iogurte de beterrabas amarelas. O cuy (porquinho-da-índia), comida equatoriana obrigatório, vinha confitado e macio com redução de chicha e amaranto. Por fim, e não menos incrível, a torturante memória do sous vide de vitela com gordura de porco, ají e nabo assado no forno a lenha e carvão. 


Sempre acho que o tempo faz a peneira do que importa. Visitei a cidade no ano passado e se tivesse de fazer apenas uma refeição em Quito, era para lá que eu voltava. Como todas as capitais do mundo, sofreu muito na pandemia, mas ainda é um destino próximo e barato, com cultura e ingredientes tão originais que, ao escrever estas linhas, deu vontade de voltar. Há muito mais para se ver ou fazer na cidade. Enquanto a peste não permite, deixo aqui a lista das outras paradas de sucesso. 


TRAVIESA CAFÉ

A melhor seleção de grãos, em todos os tipos de extração, que achei na cidade. Achei os cafés da província de Loja espetaculares. Há pequenos sanduíches e tapas.


PACARI

Se você não for besta, abastecerá por lá o seu estoque de chocolates no Equador. Meu produtor favorito – e um dos mais premiados do Mundo – rendeu até live com Luiz Horta e pode ser encaixado em seu passeio por La Ronda. 


PIZZAMAMA

Local bem simples e apertado, também em La Ronda, com toalha de plástico e pizza daquelas de antigamente, como a do El Cuartito, em Buenos Aires. Os ingredientes são todos orgânicos e a massa madre é feita na casa. Não bastasse tem ótima seleção de cervejas artesanais e fica no pátio da capelinha Reina de La Paz. Coisa linda é que parte da receita vai para o trabalho social das irmãs Missioneras de las Niñes.


URKO

Cozinha aromática e ótima, com ingredientes andinos. O ambiente é agradabilíssimo. Voltaria para o menu à la carte, para evitar a explicação demorada (com direito a aula em pé infindável na horta, calendário agrícola, descobrir uma batata numa caixa etc etc) que cercou o menu degustação. Vale a visita. 


ZFOOD

Lugar despojado e animado, com música boa, perfeito para uma refeição em família. Foco em peixes e frutos do mar. 


CHEZ JERÔME

Francês clássico, lareira, música antiga e tal. Boa carta de vinhos. Bem tradicional e um favorito romântico à moda antiga. 


HAY PAN! 

Uma das melhores padarias da cidade, parte do complexo Chez Jerôme, com ótimos croissants, croques, tartines, granolas e ‘huevos’, em várias preparações.


CASA GANGOTENA

Dentro do lindíssimo Hotel Boutique de mesmo nome, é um clássico na cidade. Tem algo da cozinha mestiça, com base francesa. Ótima carta de vinhos.






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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.