Tom, semitom e... Menton. – Mirazur



Ter um restaurante é um incrível golpe na vaidade, um exercício de humildade e a melhor terapia que existe para pessoas extremamente autocríticas. O comprometido restaurateur cria intermináveis treinamentos, procedimentos, estruturas de supervisão e controle para que tudo saia perfeito, só para testemunhar que, apesar dos imensos esforços de toda a equipe, processos falham aqui e ali.

Existem dias encantados, batizados de “dia do tudo bom”, em que o balé é perfeito e clientes cantarolam e saltitam como a Branca de Neve no clássico de Disney. Já nos dias do “tudo ruim”, um ou vários pequenos problemas geram um grande stress, contaminando toda a equipe e transformando o turno numa avalanche desastrosa.

E é por isso que, quando testemunho perfeição do início ao fim, tenho ímpetos de aplaudir de pé. Assim foi no MIRAZUR, em Menton.

Escrevi brevemente sobre o restaurante para a Revista Divino Sabores, como parte de um roteiro pela Côte d’Azur, mas me cobrava um relato mais detalhado do impecável almoço de Primavera.

Uma enorme barriga de avançados meses de gravidez me deu as boas vindas. Era Julia, brasileira linda e simpática, casada com Mauro Colagreco, o chef. 

No segundo andar, uma mesa de canto – na minha opinião, a melhor da casa – tinha tampo de madeira bruta e vista estratégica, tanto para o salão circular, amplo e claro, quanto para a linda baía de Menton.

Fui no menu completo (porque não sou besta) e apesar das dificuldades de harmonização, o excelente Cuvée Kalahari 2010, do Château Barbanau e de apelação “Cassis”, comportou-se muito bem ao longo do almoço. A boa escolha e o preço corretíssimo fizeram a sommelière ganhar vários pontos no meu conceito.

O amuse bouche era composto de anchova fresca pescada pela manhã, sobre torrada amanteigada, além de queijo de cabra em telha de polenta firme e beterraba em gelatina. Triângulo amoroso perfeito.

Em seguida, os etéreos ovos florentinos com caviar osetra
escondiam um creme de espinafre ao fundo.


 “tartare do mar” era um salpicado de abacates no auge da safra,
camarão branco, ostra, “panko” de algas, creme de cebolinhas
e a poética flor de borragem. Divino é o único termo que cabe.
Chorei com a delicadeza da salada de aspargos crus e escaldados
sobre creme de iogurte e maçã verde.
O mel vinha temperado com sementes de baunilha e raspas de limão
que emprestavam uma potência incrível ao prato.
Escondido sob o pistache caramelizado, o creme de pastinaca (panais)
com um óleo extraído de grãos de café e leve toque de avelãs. Delicioso.
Alcachofras, lulas, espinafre, anchovas e funcho ganhavam peso
e untuosidade a cada garfada, graças aos croutons de pão amanteigado
e à espuma de creme fresco na base.
A assinatura do chef são as ervas selvagens, sempre presentes nos pratos. Aqui, o ail des ours.
O foie gras grelhado ganhou leveza e equilíbrio no molho amargo
de yuzu e nas lascas de diferentes tipos de beterraba.
O delicioso pageot vinha com salsão e espuma de conchas defumadas.


O melhor timo da minha vida: com suco forte de cacau,
ervilhas frescas e em purê, flor de ervilha
e um vinagrete de framboesa e ervas que contrabalançava
a gordura da glândula.
 
A primeira sobremesa era um delicado cannellone de angélica – sim, a flor –
sorvete de iogurte e suco de maçã com gengibre.

O pomelo fica delicadíssimo depois de escaldado 15 vezes, como explicou o garçom.
O sorbet vinha com raspas da fruta, cujo sabor fica entre a laranja e o grapefruit.
E ainda houve espaço para os gravetos de cacau 
com 5 sabores de chocolate asiático e todas as 
encantadoras mini-sobremesas como a cenoura em gelatina, o macarron de limão e o caramelo.
Fiquei encantada com a cozinha de Mauro e a surpresa provocada por cada textura e sabor equilibrados, mas o mais surpreendente foi o fato disso tudo ter ocorrido sem a presença do chef. Pois é... há casas que não brilham sem o seu mentor e isso aumentou minha admiração. 

Chamei à mesa a sous-chef Chiho Kansaki,
que executou junto à equipe tudo aquilo que batizei de perfeito. 
Mesmo sem o maestro, a orquestra não saiu do tom. Sincronizei os passos com minha Branca de Neve imaginária e saí cantando com os passarinhos de Menton.

MIRAZUR
www.mirazur.fr
30 Avenue Aristide Briand, 06500 Menton - França
+33 4 92 41 86 86
aberto de meados de fevereiro ao início de novembro
fechado às segundas e terças
de quarta a domingo, das 12:15hs às 14hs e das 19:15hs às 22hs


3 comentários:

  1. A cada post uma aula: tantos ingredientes novos no meu vocabulário.
    Em relação a sua análise de se ter um restaurante, acredito que ela é válida em todos os ofícios ao se ter responsabilidade.
    Bjs

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  2. Obrigada, querido Henrique! De fato, quem é responsável, sofre. Especialmente quem vê o impacto do seu trabalho em tanta gente! Grande beijo!

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  3. Tantos pratos lindos! Em especial o de lulas e alcachofras!

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.