[texto especialmente feito para a edição inaugural da Revista da Livraria da Travessa]
Que memórias o estômago
levará de sua vida recheada? Que goles? Que nacos?
Numa breve e
nostálgica entrevista com o meu, as dez primeiras lembranças foram da infância.
Do chá de erva-doce que carregava na mamadeira durante os primeiros tropeços de
minhas pernas gorduchas, até os dedos untados escorregando pelas linguiças que
enchia na cozinha da fazenda da família, responsáveis por meu afeto por
embutidos.
Lembrou ainda do
imenso pastel de vento, devorado num botequim próximo do antigo Cinema
Petrópolis, troféu auto-ofertado pela travessura de assistir clandestinamente
ao filme “Orca - a Baleia Assassina”, antes da idade mínima exigida. O calor perfumado e quente emanado na primeira
dentada, emprestou a todas as transgressões subsequentes um desejo de pastel.
Aos domingos,
abobrinha frita e empanada, sanduíches de pepino e goles-teste no Negroni que
preparava para meu pai, rimavam com seu violão que passeava por Roberto Murolo,
samba, bossa-nova e jazz.
Meu estômago falou
também de suas privações, como o vazio que precedia a ceia de Natal, enquanto o
cheiro torturante do peru no forno cobrava a tolerância da espera pela
meia-noite. Ou ainda, o da doce provocação matinal da goiabada Cascão
derretida, saciada apenas no fim da tarde quando era servida com sorvete de
queijo minas da Leiteria Brasil aos convidados de minha mãe, em dia de almoço
caprichado.
Rancoroso, recordou
da rejeição a cogumelos secos graças à indisposição que lhe causaram ao longo
de uma serpenteante viagem de carro. As pazes só foram feitas uns dez anos
depois.
Parei a entrevista,
já com água na boca, ainda na adolescência. Poderia continuar passeando, tantos
anos adiante, por pratos, copos e cenários mais nobres, mas me dei conta de que
esse espaço, entre o esôfago e o duodeno, foi o destino de parte palpável de
muitas das minhas alegrias.
Não à toa comandou
meus passos e me levou a abrir restaurantes; estranhou sabores, processou
excessos e celebrou estrelas; devorou cidades, culturas, pessoas e suas ideias.
Hoje, inversamente, as pessoas devoram as minhas.
Torço apenas para
que, no breve trajeto entre a boca e seu estômago, aquilo que lhes ofereço se
torne um naco ou um gole feliz da sua memória.
Que delicia de texto! Fico me perguntando: como ela consegue fazer com que eu use os cinco sentidos lendo?! Além de (sempre) me fazerem soltar um sorriso e voar no tempo. Saiba que para mim proporcionam muito mais do que um “naco ou um gole” feliz de memória.
ResponderExcluirObrigada, Flavia! Fico muito feliz!!
Excluir=) estômago fala a gente escuta!
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