O gosto da liberdade - Prado, Lisboa


 

O gosto da liberdade foi intenso como o colorido dos jacarandás. 


O primeiro grupo a cruzar meu caminho foi uma família de ingleses que tinha cabelos louros, quase brancos, e bochechas cor-de-rosa tão cheias de sardas quanto vazias de máscaras. Parecia que eu nunca tinha visto tanto nariz, boca, queixo... As pessoas eram assim? 


Saí dos quatorze dias de quarentena obrigatória com uma sensação esquisita. Me senti como se tivesse adoecido e finalmente me erguesse da cama, esquecida de como eram a grama, o sol ou o céu... Só depois de uns 20 minutos reaprendendo a andar, olhar e cheirar tudo, mesmo através da máscara, fiquei feliz. Era hora da minha reserva no Prado. 


O lugar tem meu jeito, por todos os motivos, inclusive porque a ideia de comer pequenos pratos é psicologicamente eficaz. Afinal, têm menos calorias e não carregam o compromisso da escolha de um pratarraz que pode não agradar. Foi bom? Próximo! Não foi? Nunca aconteceu. A vontade é de esticar a fome até que a curiosidade encontre o limite da pança, prestes a explodir. 


A crosta firme do pão de trigo barbela faz um contraste perfeito com a banha de porco, ingrediente que só em Portugal não é palavrão. Fico sempre tentada a repetir o couvert, mas a promessa dos outros pratos não permite. A versão atual – que chega com um bilhete para o inferno dos quadris – vem com um purê de alho que obriga a devorar migalha por migalha, até o fim.



O ponto da acelga que vem com caldo de berbigão (um pequeno molusco), pão frito e manteiga defumada é irrepreensível e a mistura é genial em concepção, contraste e temperatura. O atum patudo da Ilha da Madeira derrete na boca – a espécie não se chama thunnus obesus à toa – e vem com raspas de yuzu e uma lambuzada de pimentão, na medida. O borrego merino (raça do Sul de Portugal) vem imerso no seu caldo, onde boiam também um tanto de grão de bico e a cebola Primavera. Gemi. Por fim, um dos melhores pratos do ano vem assim, sem pretensão, malabarismos, espumas ou frescuras: é uma sardinha levemente marinada com lardo e creme de salsa sobre uma fatia de pão crocante. Podia comer 50. 


Poderia falar dos outros vários pratos, todos espetaculares, mas peço especial atenção a uma sobremesa que me cativou desde a primeira visita, logo que a casa inaugurou: um improvável sorvete de cogumelos com caramelo e cevada perolada. Percam o medo e peçam. Podem me agradecer depois. 


Tudo isso vem com uma carta de vinhos original, um excelente serviço de sala e uma vantagem invisível antes da pandemia, graças ao lugar ter sido, em outra encarnação, uma fábrica de conservas: um pé direito tão imenso quanto raro em Lisboa, além de uma grande distância entre as mesas.


Pensei muito sobre o impacto da refeição em mim. Seria o efeito do desconfinamento? Definitivamente, não. O Prado está em sua melhor fase, sem sombra de dúvida e voltei feliz, mastigando todos os detalhes da refeição pelo caminho com medo de perdê-los de vez. 






PRADO RESTAURANTE
pradorestaurante.com
instagram: @prado_restaurante




0 comentários:

Postar um comentário

 

Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.