Que me desculpem nossas avós... - Arkhe recebe Feitoria






Era tempo das superfrutas, como o açaí, e da explosão das cervejas artesanais; todos tinham um trio de mini sobremesas; havia uma proliferação de pulled pork (o sanduíche de porco desfiado) por todo canto; tudo (até muffin) tinha aroma de bacon e o El Bulli estava prestes a fechar. Naquele tempo, a maioria dos restaurantes vegetarianos não conseguia se manter fiel à filosofia e acabava por adicionar um fruto do mar ou peixe aqui e ali, já que o público minguava, passada a novidade.


Era 2010.

 

Escrevi sobre isso tudo no mesmo ano de minha visita ao Joia, em Milão e foi ali que vi nascer a esperança de restaurantes vegetarianos deixarem de ser colocados no quadradinho “saudável” e migrarem para a coluna do prazer. Pietro Leeman conseguira ser o primeiro do gênero, na Europa, a ganhar uma estrela Michelin e a mantinha, por pura teimosia, há 14 anos. Comi ali um inesquecível prato vegano, quando meia dúzia de doidos falava disso e a refeição é, até hoje, uma rara e feliz lembrança da minha cabeça desmemoriada. 


Em 2017, o melhor prato do ano – e incluo aqui todas as carnes, peixes etc, provados – foi o "satio tempesta", feito de folhas e vegetais cultivados na horta do Frantzen, na Suécia. Em 2018, comi alguns dos melhores pratos de vegetais, grãos, castanhas e tubérculos da vida no Blue Hill at Stone Barns, nos EUA. Aos que torcem o nariz para o conceito (e infelizmente ainda há muitos), não se trata da comida ser vegetariana ou não. Se não abraçam as causas ambiental ou animal, comam pelo simples prazer.


Há uns 15 dias, como num daqueles momentos de raro alinhamento cósmico, testemunhei um encontro de estrelas de primeira grandeza em torno de um menu vegetal. O chef João Ricardo Alves, do Arkhe, meu restaurante vegetariano preferido em Lisboa, recebia o João Rodrigues, do espetacular Feitoria, que lançou recentemente um menu com grande foco em vegetais. O jantar? Uma das grandes refeições deste ano. 


Não bastasse a dupla João/João, tive o prazer de conhecer Alejandro Chávarro (ex- Alain Senderens, David Toutain, Quique Dacosta... e por aí vai), sommelier colombiano que agora é gerente de sala e sócio da casa. A harmonização foi a melhor que vi em muito, muito (eu já disse muito?) tempo. 


A refeição foi como uma sinfonia crescente em peso e textura, como quem vai de uma salada a um prato robusto de carne. Aquela, que agora não me falta.


Começou com tomate, ameixa fermentada e água de alface, makaneesh, cebola e sumagre, levíssimos, etéreos. Passou por uma melancia assada com parmesão e pesto, que ainda está na memória. O tutano vegetal com legumes da estação, amendoim e curry vermelho parecia ter gordura, de fato, e o tortellini de kimchi com cenoura e curry verde estava delicadíssimo. A abóbora com pinhões, mel e topo de queijo São Jorge (curado por 4 meses) e alho assado foi um dos pratos favoritos e, por fim, o pithivier de berinjela e alga kombu, babaganoush e suco de tamarindo parecia ser feito de carne de caça, de tão denso e rico. 


Os vinhos foram absolutamente impecáveis, tanto pela escolha certeira de rótulos quanto adequados ao peso e estrutura de cada prato. Houve muita coisa linda: do correto crémant d’Alsace (vinho que me pergunto por que não servem mais em restaurantes, dado o ótimo custo benefício) do Zusslin que abriu os trabalhos, passando pelo Von Grauer Schiefer 2013 do querido Clemens Busch, que tive o prazer de receber no Rio. Destaque para o espetacular vin Jaune do Labet Les Singuliers (!), e para a harmonização impecável do pithivier com o Bourgueil Chevalerie 96, que ainda trazia uma fruta adorável, madura e picante. 


Poderia passar mais meia hora descrevendo o pré-dessert e a sobremesa, mas já lhes tomei tempo demais. 


Sei que este espaço não é feito para falar de uma noite que não pode se repetir, mas o evento me permitiu reparar os quase três anos de hiato no blog e a qualidade das refeições incríveis que não publiquei, tanto as feitas no Feitoria quanto no Arkhe.


Até bem pouco tempo, nossas avós tinham o hábito de cozinhar legumes e verduras até lhes extrair a alma, com medo de impurezas. Hoje, temos esse mundo que brinca com as texturas e nuances dos tubérculos, folhas e vegetais crus ou pouco cozidos, crocantes, simplesmente chamuscados, marinados, em preparações absolutamente contrastantes com as do passado.


Nossos filhos comerão bem melhor que nós, que nos desculpem nossas avós.

ARKHE

arkhe.pt

FEITORIA

restaurantefeitoria.com

* a alegria e a companhia felizmente não me permitiram registrar (com qualidade) todas as etapas. 

Tutano vegetal com legumes da Estação,
amendoim e curry vermelho

Tortellini de kimchi,
cenoura e curry verde

Abóbora, pinhões, mel,
queijo São Jorge e alho assado
Pithivier de berinjela e alga kombu,
babaganoush e suco de tamarindo


Alejandro Chávarro - competência e simpatia




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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.