A outra Lisboa


Não encontrava a empolgação que me fizera querer estar aqui, a cada minuto e segundo do ano paquidérmico que passou. Só via os salões vazios do aeroporto, uma sequencia infinita de sádicos organizadores de filas separando o nada, além de alguns poucos funcionários e pessoas sem ânimo que andavam segurando os pés como quem teme o embarque. 


Ninguém corria, não havia abraços ou despedidas, não me indispus com os lerdos do raio-x. Ali estávamos para os 6 únicos voos daquela sexta, perdidos no painel imenso: Amsterdã, Miami, Houston, Paris, Cidade do Panamá e o meu destino, Lisboa. 


O free shop nunca foi tão comprido, com carrosséis de mercadorias esquecidas, expostas para os fantasmas dos viajantes frustrados. Quase todos os quiosques estavam fechados, alguns com uma fita delimitando o espaço das cadeiras ausentes, guardando a cena do público que morreu. 


O avião vazio não era "sorte", o bagageiro tampouco. As máscaras de todos me fizeram lembrar que era difícil (e perigoso) respirar. 


Pus os fones de ouvido. 


Decidi não olhar mais para os corredores e preguei minha atenção nas luzes da pista, a única imagem que consegui reconhecer da tal "alegria de viajar" além do fôlego suspenso ao sentir o corpo pressionado contra o assento. Dormi.


Acordei para a cidade pela janela do taxi e estranhei a quantidade de gente sem máscaras. Lá veio o medo, de novo, mas soube que desde o início de maio, restaurantes e cafés podem ficar abertos, até as 22:30hs. Lá veio a esperança, de novo.


Tudo caminhava para que abrisse um negócio aqui, e então veio o atropelamento pandêmico. Praguejei contra Murphy, que se encarregou de atrasar licenças, documentos, reuniões, projetos e o diabo, ao longo de 2019. Hoje ele está em minhas preces por ter me livrado de um pepino ultramarino. Cá estou, a lidar com os penduricalhos dos sonhos e com a incerteza, na quarentena obrigatória de quem chega. Talvez amanhã pense na alegria e na sorte que é estar em Lisboa, mas por enquanto ainda vivo a apreensão da viagem, adiada por 1 ano e 3 meses. 


Nesses dias trancada, a cidade me vem aos poucos pelo Glovo, um aplicativo que já me trouxe um leite dos Açores, um queijo de Azeitão, várias conservas e o pão da Gleba. Quem sabe, assim, eu monte Lisboa dentro de mim.  



9 comentários:

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  2. Maravilhoso texto. Prosa poética encantadora. ������

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  3. A reconstrução, pela poesia e pela comida. Lindo texto, Cris.

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    1. Obrigada, querida Jaque. Menciono sua empresa no próximo texto, no Mesa Marcada, portal português.

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  4. Adorei o texto! Vou aí te visitar :)

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    1. Não sei quem você é, já que para mim o remetente aparece como unknown, mas venha! 🙂

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  5. Cris, espero que possa aproveitar cada instante desse parênteses lisboeta. Um abraço.

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.