No calor da memória - Chocolate quente, Zürich.


Às 4 da manhã na fazenda, era só breu e frio. De lanternas em punho, caneca de metal, colher amassada, pijama de flanela e uma boa dose de sono, seguíamos o “mestre” até o curral. Num ziguezague sonolento, tentávamos desviar do esterco que cobria o caminho até o prêmio. E lá estava ele: sob o olhar desconfiado da vaca, via o leite cremoso lhe espirrar das tetas até que terminasse espumante e quentinho em minha caneca. Aprendi a tomar meu primeiro copo assim: com um prazer mágico, sentada na cerca do curral, esperando o sol nascer.

Com o passar do tempo, uma valiosa adição foi feita ao ritual: um saquinho cheio de Nescau que carregava no bolso do pijama. A mistura de cacau sofreu vários e louváveis “upgrades” no meu copo ao longo dos anos, desde o abandono da quantidade imensa de açúcar que a acompanhava, até a qualidade e procedência do pó. 

Televisão, estudos, preguiça e trabalho me afastaram do curral da minha infância; já o leite denso e cremoso da memória, nunca me deixou.

Eric's Confiserie Baumann, num dia frio.
Anos depois, num certo Outono gelado na Suíça, terra da Nestlé que produzia o achocolatado do meu bolso, buscava diariamente o “abraço” daquelas madrugadas da fazenda, na forma de um dos produtos mais icônicos do País: o cobiçado chocolate quente. Foi assim que esbarrei em alguns...

Numa zona residencial de Zürich, muito longe do circuito turístico, famílias fazem filas diante da Confiserie Baumann. A loja é de Eric, o chef chocolatier, filho e neto de confeiteiros. Seus macarrons são sucesso na cidade muito antes de se tornarem populares no mundo, e sua loja diariamente apresenta uma infinidade de sobremesas, tortas e pães cobiçadíssimos. Num salão simples de serviço atencioso – onde o inglês inexiste e a mímica impera feliz – apontei para “schokolade” e ele veio assim: com leite espumante e denso, raspinhas de um chocolate excelente no topo, e mistura nada açucarada por dentro. De aquecer o coração.

O chocolate quente e ligeiramente espumante de Baumann.
A adorável lojinha da Sprüngli.
Já na tradicional confeitaria Sprüngli, fundada em 1859 na Paradeplatz, a “música” é outra: o inglês abunda e os turistas, idem. A loja do primeiro andar é adorável, e também uma bênção na hora de comprar para presente os emblemáticos kits feitos de chocolate em todas as formas, preços e combinações possíveis. No segundo andar, o salão amplo não é particularmente bonito, mas o balcão da confeitaria atrai toda a atenção. O chocolate custa em francos suíços o equivalente a uns R$15,00,  como na Baumann. O produto não é excessivamente doce, mas o fato de ser bem mais líquido o fazia delicado demais para mim.

O conhecido chocolate quente da Sprüngli.














Veludos, candelabros e o "calor" da Schöber




















No meio da Cidade Velha, uma pequena jóia fundada em 1842, serve um estilo radicalmente diferente: Michel Péclard, que administra o ponto histórico desde 2009, faz chocolate quente a partir da barra derretida. Este estilo é feito para dias bem frios, nos quais o líquido, muito denso e quente, desliza pela garganta e nos preenche inteiros de forma subcutânea, escorrendo pela silhueta como se fôssemos moldes preenchíveis. Não é doce, mas nos ocupa como uma refeição.

O denso mergulho no chocolate da Schöber.
Apesar da luxúria do último e da delicadeza do segundo, o que mais se aproximou do que eu requeria foi o primeiro. 

Tomei xícaras e xícaras diárias, em vários pontos da cidade, em doses dignas do arrependimento que se seguiu. Depois de todas elas, só uma conclusão existe: seja curta e barata até o curral, ou longa e cara até as assépticas mesas suíças, o que importa é se a sua “viagem” está destinada a ser memória... ou esquecimento.

ERIC'S CONFISERIE BAUMANN
www.confiserie-baumann.ch
Balgriststrasse 2, Zürich, Suíça
+41 44 382 11 21
de terça a sexta, das 6:30hs às 18hs
sábados, das 6:30hs às 16hs
domingos, das 18:30hs às 17hs

CONFISERIE SPRÜNGLI
www.spruengli.ch
Bahnhofstrasse 21, Zürich, Suíça
+41 44 224 46 16
de segunda a sexta: das 7hs às 18:30hs
sábados, das 8hs às 18hs
 domingos, das 9:30hs às 17:30hs

CONDITOREI CAFE SCHÖBER
www.conditorei-cafe-schober.ch
Napfgasse 4, Zürich, Suíça
+41 44 251 51 50
de segunda a quarta, das 8hs às 19hs
de quinta a sábado, das 8hs às 23hs
aos domingos, das 9hs às 19hs



2 comentários:

  1. Ai, Cris, que lindo! Chorei com as idas ao curral, eu também vivi isso! Só que o meu avô, escondido da minha avó, colocava um dedinho de nada de conhaque no fundo da nossa canequinha... ou melado, quando ela tava de olho, tudo feito por lá, que tinha engenho e alambique. éramos muitos primos, passávamos as férias lá, que saudades! Obrigada por ter me trazido (mais) essa delícia de recordação. Beijos! Lilian Garcia (Ligameba!)

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    1. Esse conhaque eu vim "cobrar" depois, Lilian! Vai ver foi essa falta na caneca que me fez abrir o restaurante. Grande beijo de fazendeira pra fazendeira.

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.