Cadê minha avó? - evolução dos bistrôs parisienses.

Cadê minha avó?



Há uns 20 anos, não havia música. Era prato do dia, cerveja ou vinho. Se vinho, era pichet de branco ou tinto; assim mesmo: “branco ou tinto”, sem região ou sobrenomes, servido num copo sem pé. Nas mesas, guardanapos de pano ou papel. O cardápio? Sempre na lousa, com tudo que havia de mais fresco na feira. No salão, mulher; na cozinha, marido... ou vice-versa.

Os bistrôs surgiram ao redor das fábricas de Paris no início da Revolução Industrial. Era negócio de camponeses do centro da França - especialmente de Auvergne - que migraram até a capital para trabalhar como carregadores de água, madeira, carvão ou bebidas. De olho nos operários fabris, alargaram seu negócio e pariram a alternativa aos elegantes cafés parisienses, com refeições a preços modestos e serviço rápido. O sucesso do bistrô foi tão grande que em 1915 havia (pasmem) mais de 320.000 por toda a França.



Corta a cena. É 2002.

A economia francesa entra em recessão nos anos 2000. Não à toa, surge um novo conceito: o da bistronomie, contração das palavras gastronomie e bistrô, que trazia a alta gastronomia - antes reduto do restaurante caro - até a comedoria modesta. A fórmula pronta de uma entrada, prato e sobremesa agora vinha com ingredientes de excelência em montagens rudimentares e serviço sem rapapés. O preço final circulava em torno de 30 euros. Quem batizou a brincadeira foi o chef Yves Camdeborde, o primeiro a levar esse espírito ao seu Régalade, espetacular até os dias de hoje.

Dos 320.000 do início do século passado, restam 35.000. As razões são várias, entre elas a dificuldade de identificar o que os define. De três anos pra cá, o conceito mutante evoluiu mais uma vez. Limitado pela fundura dos bolsos e empurrado por tendências que voam que nem trem-bala a cada deslizada de dedo pelo Instagram, Snapchat ou Facebook, surge o neo-bistrô.



Entrées ou amuse-bouche são agora tapas ou zakouskis (os belisquetes russos). Na retaguarda, um cozinheiro oriental é quase obrigatório. Água não é mais coisa simples; tem garrafa estilizada e logomarca da casa, podendo ser gaseificada no local. Copos? A maioria usa o caríssimo e finíssimo cristal (quem diria) dado o interesse crescente por vinhos. E por falar nisso, as cartas trazem o nome dos produtores, não das regiões, para educar o consumidor habituado a pedir “um Borgonha” genérico. É meritocracia no copo. Cervejas são artesanais e drinques, quase obrigatórios - aliás, andam acompanhando pratos. Os utensílios fazem show à parte, cada vez mais singulares, assim como o design dos cardápios. Os garçons viraram personagens: são decorativos, artísticos e vêm até de moletom, cantando junto com o Johnny Cash ou com o rock progressivo que vibra na caixa de som.



Mas o que o longo preâmbulo tem a ver com o título?

Mesmo para os viajantes em primeira visita à França, o país já é memória afetiva, entre outras razões porque o bistrô é dos negócios mais replicados em cada curva do globo terrestre. É território de croques, saladas com queijo de cabra, sopas de cebola, filés com fritas, moules, tartares, cassoulets, boeuf bourguignon, peixes na manteiga, boudin noir, tatins, mousses e crèmes brûlée. Essa é a língua que falam o Le Comptoir du Relais, Café Constant, L’Évasion ou Bistrot Paul Bert, para citar apenas os de Paris. É a volta para uma casa que nunca foi nossa.

Os neo-bistrôs são uma delícia, mas estão sem dúvida na caixinha do “outra coisa”, fruto da globalização, da busca do público por uma cozinha mais leve, do caldeirão cultural que é a França. Apesar dos necessários avanços, torço para que os clássicos não desapareçam e, com eles, a untuosa identidade francesa com produtos do terroir e métodos tradicionais de preparo. Para mim, o bistrô é - e sempre será - quente, gordo e doce feito colo de avó. Vive la résistance!



NEO-BISTRÔS EM PARIS:

Les Enfants Rouges – um dos fiéis às raízes, Daï Shinozuka (não tem sempre um oriental na cozinha?), principal braço de Yves Camdeborde no Comptoir du Relais, é o chef competente que me entregou uma das melhores refeições em muito tempo.

Mensae – o lugar se divide em dois salões de luz gostosa, com pratos ótimos, individuais ou para dividir. Indescritíveis mexilhões e belos assados, o forte da casa.

Le Servan – ambiente clássico, limpo. Nas entradas, de rolinho primavera à croquetas espanholas. Nos principais, uma deliciosa volta aos pratos tradicionais muito bem executados.

Dersou – Com menu de preço mais puxado e vários orientalismos, traz cardápio emparelhado com drinks.

A Mere – com uma forte base clássica, o paulista Mauricio Zillo tem excelente fórmula de almoço, com execução impecável e um dos melhores custo-benefício da cidade.

A.Noste – tem tapas e brunch aos domingos (já disse tudo), mas a cozinha sólida fez com que ganhasse como melhor bistrô do Guide Lebey, em 2015. Belas ostras."

7 comentários:

  1. Entre tradicionais e neo bistrot, o post é uma delicia.

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  2. muito bom o post, retornei a minha Paris!

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  3. Que delícia de post!uma verdadeira aula e de um jeito super gostoso!

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  4. Espetáculo. Muito bem escrito e descrito. Seguirei as dicas!

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  5. De qualquer maneira, é sempre bom tomar cuidado. Sempre que você vai a Paris tem alguém que sugere um bistrozinho onde o pai cozinha, a mãe fica no caixa e a filha serve as mesas. Geralmente, é longe,caro e a comida é ruim.

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.