Até o século 16, o nome batizou uma parte da cerimônia do chá servida aos viajantes que paravam nas ryokan, hospedarias tradicionais de Kioto. A refeição kaiseki consistia, então, de uma tigela de missô e três pratos.
Hoje, nos restaurantes, o termo designa um artístico e refinado menu degustação. Uma sequência de sete a nove pratos em ordem específica de serviço e cocção, é levada à mesa em delicados recipientes, com intervalos precisos.
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Acompanhada de duas crianças famintas, adentrei o Rosanjin, um dos três restaurantes em Nova York que melhor executam o ritual kaiseki. Nem uma pedrinha sequer mascarava nossa fome.
Anunciei minha reserva e ouvi: “Sówi, wi dón têi no childên unda tãhtín.” (que em japanglês significa “desculpe, não aceitamos crianças com menos de 13 anos”). Não, não fiz cara de monge. Meu olhar nada zen budista acompanhou a voz, duas oitavas abaixo, argumentando que isso deveria ter sido dito no momento da reserva.
Como a comunicação parecia não ser nosso forte, não movi um músculo sequer em direção aos dois graus abaixo de zero que se instalaram na minha orelha esquerda por conta de uma pequena fresta da porta de entrada. Depois de uma longa troca de olhares à la Kill Bill, com trilha sonora mental e tudo, “enguicei” a hostess. Desconcertada, decidiu perguntar ao dono se poderíamos nos sentar.
Finalmente adentramos no território sóbrio e escuro, em vermelho e preto, no qual crianças jamais haviam pisado. O exército inimigo consistia da hostess, dublê de garçonete e de uma outra moça igualmente simpática e bonita. Não me deixei trair pelas aparências; por trás daqueles sorrisos havia inúmeras dúvidas: eles pagarão o preço cheio do menu pelas crianças? Serão pequenos demônios que incomodarão os demais clientes? Devolverão os pratos? Cuspirão em mim?
Do lado de cá do front, temia que não suportassem a batalha de ingredientes desconhecidos e excesso de etapas. Num tom firme, calmo e preciso anunciei: “Filhos, são oito pratos e é isso.”.
Tomei a poção mágica para garantir a coragem. Era o saquê Yuji no Bosha, cuja tradução é algo como “cabana na neve”. Aquilo me inspirou: eu estava na cabana, a neve rolava lá fora e nem a pau enfrentaria o frio antes dos oito pratos.
Olhares assustados acompanharam a chegada do primeiro desafio.
O abre-alas consistia de lascas de caranguejo com baby tatsoi, cogumelos enoki e pignolis marinados em caldo de bonito. Nem eu havia entendido a descrição do prato em “japanglês”, que dirá meus pobres soldados. Fosse em português, perdíamos a guerra. Confusos, me encaravam como quem pede permissão para ir adiante. Com um aceno de cabeça, dei a ordem e meu pequeno exército seguiu marchando. Uma cutucada com o garfo aqui, uma separada de folha ali, e vejo minha filha menor colocar na boca um dos ingredientes. Depois de alguns segundos de apreensão em que não respirei ... ela gostou.
Passada a primeira luta, seguimos com os sashimis de atum blue fin, olho-de-boi, fluke e golden snapper. Sashimis nunca foram desafio para as crianças cariocas. Avante!
Em seguida, um nada ameaçador olho-de-boi grelhado e marinado em yuzu e missô branco, que deixava um gosto untuoso e doce na boca. Maravilhoso.
O exército inimigo começava a estremecer, e então veio com tudo: um dumpling de peixe com juliana de cebolinha, wasabi fresco, cogumelos matsutake, caldo de peixe levemente defumado, flor de crisântemo e folha de ouro ameaçava derrubá-los. “We will never surrender!”, pensei. Enquanto ninguém olhava e com um golpe rápido de fazer inveja a qualquer samurai, arrematei metade dos pratos de cada filho.
Um tempura de linguado enrolado em folha de shiso, outro de lula enrolada em alga, e ainda tempuras de batata doce e ervilha foram apresentados com um sorriso nos lábios. Ora, toda mãe sabe que crianças comerão qualquer coisa empanada e frita. Sequer piscaram.
Exaustos e quase sem forças, ainda cutucaram algo do arroz tradicional cozido no caldo de peixe, com cogumelos shimeji, legumes em picles e sopa de missô vermelho.
O inimigo lutou até o fim, com uma última investida na forma de um sorvete de chá verde com pudim de feijão azuki e romã. Vitoriosos, meus soldados lamberam os beiços.
O salão, em silêncio, nos olhava respeitosamente. Contive o impulso ridículo de fazer um high-five com meu filho. Finda a batalha, a garçonete pergunta se éramos do Brasil e afirma saber que tínhamos a maior colônia fora do Japão. Em seguida, completa: “Bem que percebi. Com a naturalidade com que eles comeram, nossa cozinha deve ser como a da “mamma” não?”
Pisquei para as crianças e disse a eles baixinho: “Desta ‘mamma’, com certeza!”
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Esta história é baseada em pratos reais, mas a fantasia que se desenrolou na cabeça da autora, não. Exceto a pequena confusão da reserva, o serviço foi excelente e a comida, fantástica. Este filme, definitivamente, não é recomendado para menores de 13 anos.
ROSANJIN
www.rosanjintribeca.com
101, Duane St. - New York
212.346.0664
Ótimo texto. Acuidade e criatividade em um jyu kumite de humor e sabores.
ResponderExcluirValeu! Beijos, Cris
ExcluirAmei.
ResponderExcluirQue bom! Beijo grande!
ExcluirBaita texto.
ResponderExcluirÊêeee! Valeu, Fábio!
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