Sergio Herman, que gentilmente me abriu as portas de sua frenética cozinha. |
Era 1:30 da manhã quando o cansaço, o sono e a premência de uma viagem repentina me convenceram, enganosamente, de que o restaurante que queria visitar ficava a pouco mais de uma hora de Amsterdam. Seria uma ótima oportunidade de conhecer a região de Zeeland, a sudoeste da Holanda, famosa pelos arenques, mexilhões, enguias, ostras e camarões, num passeio curto até o local.
Decisão tomada, a reserva foi um parto: mandei inúmeros e-mails com negativas como resposta e, por duas
vezes, quase desisti, até que um cancelamento de última hora me deu uma chance.
Vibrava às vésperas da data agendada, confirmada e reconfirmada, quando o
concierge do hotel me pergunta:
- - “Mas você vai e volta no mesmo dia?!! São
três horas e meia de viagem... só de ida!”.
A frase ecoava nos meus ouvidos. Meu cérebro ainda processava a informação quando minha boca soltou um espasmo involuntário que
dizia: “claro!” (bem eu...). Depois da intensa programação
durante o dia, a decisão de confirmar o jantar virou um pequeno elefante sentado em minhas costas. Ainda assim,
louca como Don Quixote, me lancei contra os gigantes moinhos de vento da costa
holandesa numa batalha de 3 horas. Era moinho atrás de moinho, atrás de
moinho....
A viagem parecia não terminar e a bolinha do
GPS ficava ao fim de uma longa estrada secundária e sinuosa que não levava a lugar algum. Finalmente chegamos, eu e o elefantinho, à linda cidadezinha
histórica de Sluis, na fronteira com a Bélgica. Sluis era um antigo porto de
Bruges, antes que sedimentos naturais se depositassem na costa afastando-a do
mar e formando a reserva natural de Zwin.
A proximidade da cidade belga e a bela região
costeira fazem com que a localidade fervilhe o
ano todo, com seus mercados de produtos frescos e artesanato, boutiques e
restaurantes abertos todos os dias, coisa raríssima para padrões holandeses,
mesmo na capital. Parecia uma Búzios do Mar do Norte. “As praias daqui são
consideradas as mais lindas da Holanda” - me disse um local – “mas na Bélgica o
clima é diferente: é de badalação, servem champagne na praia. Nada tem a ver
com a parte holandesa, mais familiar”.
O restaurante OUD SLUIS começou como um café-bistrô
bem simples, fundado por George Herrel. Sua filha assumiu e o tornou uma das
mais renomadas casas de frutos do mar da região. Em 91, o
reinado passou a Sergio Herman, que elevou a casa ao nível das 3 estrelas
Michelin atuais com um cardápio “do dia” que passeia pelo que há de mais fresco
na região.
A casinha antiga no meio da praça não sugeria o
ambiente que encontrei, contemporâneo e limpo, com cozinha aberta e amplas
mesas redondas, além de música "lounge" (que, pessoalmente, dispensaria). A
cozinha é surpreendente e, apesar da vocação para frutos do mar da região,
fiquei igualmente impressionada com o frescor dos legumes, de sabor intenso e
crespo. A grande influência da colônia (Indonésia) também enriquece e tempera
os pratos.
A sequência divina de sete amuse bouches e três pratos
principais, que mudam diariamente, me fez esquecer por completo a viagem de três
horas e abandonar gradativamente o espírito Don Quixote:
Salmão com pastilha gelada de raiz forte e mizuna (folha de mostarda japonesa). |
Berbigão (molusco) da região de Zeeland, com yuzu, curry, quinoa vermelha e rabanete branco. |
Black pudding (linguiça de sangue) com maçã verde, nozes e endívias. |
Paisagem indonésia: seroendeng (mistura de côco moído com amendoim e especiarias), lima kafir e emping (chips de um fruto indonésio). |
Barbecue de enguia de Zeeland com cítricos japoneses congelados e rabanete de Inverno. |
Robalo em tartare com tangerina, lima e jalapeño (ao fundo), e ostra esferificada de Zeeland com barriga de porco. Gemi alto, confesso, neste prato. |
Frutinha de buckthorn com salada acridoce de abóbora sobre o gelo. Que poesia! |
As vieiras com alcachofras de Jerusalem, chicória e cebolinha em picles são regadas com caldo de arroz tostado e polvilhadas com farofinha de avelãs. |
E a versão do prato em canapé com gelatina
de agrião.
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O sabor intenso do "poussin" (frango jovem) é acentuado por especiarias e uma marinada de um dia e meio no missô. Vem com toque de gengibre e lima kafir e tem sua pele transformada em chips... |
...ao seu lado, ovos em “reverso” feitos de curry com missô. |
Poderia ainda falar dos deliciosos vinhos escolhidos por Lotte, a sommelière, pra acompanhar cada um dos pratos, ou ainda da seleção de queijos que finalizou a refeição, mas meu relato já está maior do que a viagem.
Se não quiser participar da odisséia quixotesca, basta visitar o restaurante a partir da Bélgica (fica a meia hora de Bruges), mas a refeição foi tão feliz que ainda assim garanto: ex-Quixote agora Sancho Pança, tomou com outros olhos e nenhuma beligerância os moinhos de vento da volta e terminou feliz nos braços de Dulcinea, apelido que levou minha cama de hotel desde aquela noite.
OUD SLUIS
www.sergioherman.com
Beestenmarkt 2 4524 EA Sluis, Holanda
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