A chama que não se apaga - Chiltern Firehouse, Londres



Numa noite qualquer de 1666, Thomas Farynor, o padeiro do Rei, vai deitar-se. Não teria belos sonhos, o pobre homem. Ao contrário... Seu nome seria associado a um pesadelo ainda maior do que o da “peste negra”, doença que assombrava a população de Londres.

A brasa traiçoeira do forno vivo, esquecido, explode. Assim começaria o incêndio que destruiu 1 milhão e meio de metros quadrados, 13.200 casas e 84 igrejas.

A tecnologia de combate ao fogo evoluiu imensamente, mas até o fim do séc.19, as mangueiras ainda eram feitas de couro, único material capaz de aguentar a pressão da água bombeada por uma geringonça, com um pistão. Todo esse aparato ficava em vagões puxados por cavalos, enquanto os heróis brigavam com as chamas. Assim era, em 1889, quando um dos primeiros corpos de bombeiros de Londres foi inaugurado, numa construção de arquitetura vitoriana gótica, em Marylebone.

Ironicamente, 126 anos depois, meu olhar foi capturado pelo carvão em brasa, que ardia no forno da imensa cozinha aberta, que ocupa o salão central do mesmo edifício onde fogo era palavrão. Estava no restaurante mais “quente” de Londres – com o perdão do trocadilho:  CHILTERN FIREHOUSE.

A Estação de Combate a Incêndio, desativada em 2005, foi transformada no hotel e restaurante de 26 suítes, que é – de longe – a reserva mais difícil na cidade. O motivo? Todos.

Os tijolos da fachada e sua aparência exterior foram preservados, incluindo os imensos vãos por onde antes saíam cavalos em disparada e hoje, entra calmamente a luz que banha a casa. Há cabines vitorianas de cor marfim, cada uma de um jeito, com cadeiras e tamanhos diferentes, pra comer sem frescura ou pressa, de olho no teto feito de um trançado das mangueiras na antiga estação.

A varanda com bar de ostras é concorrida; há clientes buscando o sol e paparazzi atrás de celebridades. Pouco ligo para as celebridades - a não ser pelo risco acessório de uma câmera me flagrar com couve nos dentes - mas muito ligo para as ostras fresquíssimas, de vários tamanhos e procedências, como essas carlingford irlandesas, dutchy native inglesas e speciale de claire francesas.

A equipe é impecável, a começar por Joana, a garçonete portuguesa, filha de um chinês, que é competente no atendimento e na forma de repassar o conceito da casa: “Já trabalhei em muitos estrelados Michelin – disse – mas com detalhes e qualidade assim, em cada produto, serviço e procedimento, nunca. Só o azeite que rega os pratos custa mais de 20 pounds. Temos treinamentos constantes e a guerra é diária pois o movimento é incessante”. Abraçou a “causa” da casa (coisa linda de ver numa equipe) e nos sugeriu pratos espetaculares.

Virei fã absoluta do chef lisboeta Nuno Mendes, que mantém o alto padrão, com uma cozinha simples, de ingredientes de altíssima qualidade, apesar dos seus 120 lugares.


Era almoço e bolinhos compridos de milho com manteiga de chipotle e maple, me sorriram da mesa ao lado. Não pude escapar.


Nota importante para a carta de vinhos excelente, com serviço idem. Tudo irretocável. Comecei com um Bruno Paillard Rosé Première Cuvée em taça.


As alcachofras de Jerusalém com straciatella de trufas e avelãs, mereciam foto melhor, mas estavam de gemer. Não curto trufas, porque raramente estão frescas, mas Joana insistiu e não me arrependi.


A enguia, simplesmente lambuzada com teriyaki, com batatas defumadas na grelha, algas e sal de gergelim branco (gomashio) já podia fechar meu dia. Na taça, um Beaune 1er Cru 2000,  do Domaine Leroy, para lhe acompanhar em cor e descer redondo.


Mas ainda houve porco ibérico, que vi assar, com abobrinhas e acelga no missô, e torradinha de levedura (ingrediente presente em quase todos os cardápios londrinos), em ponto perfeito de cozimento, queimado na brasa por fora e rosado por dentro. Gemi.


A culpa não me livrou da gula, que encerrou o dia com sorvete de leite com favos de mel londrino.


Lancei um último olhar, feliz e satisfeito sobre a cozinha aberta do salão, e pensei no pobre padeiro, que muitos dizem ter sido um mero bode expiatório a carregar toda a culpa pelo Grande Incêndio de Londres. Uma coisa é certa: se aparecer um outro bode, chamado Thomas ou não, com certeza terá uma história diferente. Vai parar na grelha de Nuno Mendes e sairá glorioso, com certeza sob aplausos. 




CHILTERN FIREHOUSE
www.chilternfirehouse.com
020.7073.7676
restaurant@chilternfirehouse.com
1, Chiltern Street - Marylebone
De segunda a sexta: das 8hs às 10:30hs, 12hs às 14:30hs e das 17hs às 22:30hs
sábados e domingos: das 11hs às 15hs, das 18hs às 22:30hs



1 comentários:

  1. Hoje vieram me procurar para sugerir pratos depois de ler essa review maravilhosa :)
    Obrigada

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.