Minha mente flutuava no mesmo ritmo da enorme peça de arte contemporânea que avistava, à deriva, no lago. “Como vim parar aqui?” – pensei.
Minha primeira visita àquele país, não fora motivada pelo apelo dos esportes radicais, que levava tantos brasileiros à Nova Zelândia. Um livro que descrevia a paixão de um americano que decidiu migrar depois de suas férias no País, foi o meu cartão de embarque. Além da beleza natural ímpar, em que a vista de um local como Kaikoura pode conjugar o lilás de uma belíssima plantação de lavanda com alpes nevados ao fundo e uma baleia dançando num mar de azul caribenho ao seu lado, uma coisa me ganhou de cara: a cultura do vinho.
Enquanto no Brasil há aproximadamente 1.000 vinícolas para mais de 200 milhões de habitantes, os neozelandeses têm mais de 700 vinícolas para seus parcos 4,5 milhões, e são o 10o exportador mundial de vinhos, em valor. O resultado não podia ser outro: é vinho em piqueniques, em museus, na praia, na piscina, no meio da feira ou no balcão do bar.
Para bichos urbanos como eu, Auckland - a maior cidade da Nova Zelândia - é o ponto de partida ideal. A comida reflete o caldeirão multicultural com influências maori, europeia, asiática e das Ilhas do Pacífico e as lojas e cartas de vinho estão entre as mais completas do País, mostrando que nem só de Sauvignon Blanc vivem os neozelandeses.
A Sky Tower, estrutura metálica mais alta do Hemisfério Sul, é um dos pontos turísticos mais procurados da cidade. Há quem se atire lá do alto em bungee jump, e há quem – como eu – se jogue nas inúmeras opções de restaurantes da Sky City, o polo gastronômico que a cerca, começando pela Federal Street, que tem de tudo.
No tão informal quanto agradável japonês MASU, por exemplo, o vinho brilha mais que saquê, com 116 rótulos de quase todas as uvas do país, onde destaco no quesito “harmonia”, os aromáticos gewürztraminer das regiões de Gisborne ou Marlborough.
Na retrô e adorável FEDERAL DELI - uma homenagem às delicatessens judaicas de NY - seu wiener schnitzel de vitela de leite com salada de batatas pode vir acompanhado de ótima música ambiente e quase 40 rótulos de vinho em taça.
Balcão do Depot. Obrigatório. |
E ainda, um dos meus balcões preferidos, que fica na mesma rua, é o do DEPOT, que serve desde ostras de Bluff – as carnudas, metálicas e suculentas ostras locais, consideradas uma das melhores variedades do mundo, até costelas de boi com carne que escorre pelos ossos. Além dos vinhos em copo, há os “on tap”, em garrafinhas que vão de 160ml a meio litro, das quais recomendo um dos deliciosos pinot noir de Central Otago.
Imperdíveis ostras de Bluff. |
Passear pelo Viaduct Harbour é obrigatório, e mais ainda aproveitar a inspiração marinha e comer as divinas amêijoas nativas: sejam as “diamond shell”, gordas, doces e amanteigadas; as “moon shell”, mais firmes, de gosto profundo e marinho e que lembram carne quando cozidas; as “storm”, carnudas e imensas como vieiras, com aroma de crustáceos; ou ainda as salinas e espetaculares “tuatua”, que têm gosto de algas. A maioria delas vem da região de Cloudy Bay, a mesma dos sauvignon blanc da vinícola homônima que lhes faz a perfeita escolta.
Na Ponsonby, o mais antigo reduto gastrô de Auckland, as opções de bons pratos e copos são inúmeras. No CLOONEY, restaurante que exalta os ingredientes neozelandeses e, sem dúvida, onde fiz uma das melhores refeições na cidade, também encontrei uma carta espetacular. Sua lista de vinhos doces é tão extensa que deu conta até de harmonizar com a melhor e mais complexa sobremesa do meu ano: panacotta de chá verde, figos desidratados, caqui, sorvete de anis com vinagreira, cubos de kiwi e chips de anis. Já pensou?
Outro incontornável é o ORPHAN’S KITCHEN, um bistrô “uber” cool com cardápio enxuto de 8 pratos que muda constantemente. Josh Helm, um dos órfãos-sócios que batiza a casa, herdou do pai garrafas difíceis de encontrar, e que oferece a bons preços, como este Stonyridge de blend bordalês, da Ilha de Waiheke.
E ainda no BADUZZI, uma das inúmeras e adoráveis casas italianas que toda metrópole que se preza precisa ter, comi um lasagnette com ragu de cordeiro, que rimava lindamente com os vinhos da uva dolcetto, cultivar que vem crescendo na própria região de Auckland.
Lasagnette de cordeiro do Baduzzi, regada a uma carta tão simpática quanto... |
Mas tem vinho até na feira? Claro que sim. No LA CIGALE FARMER’S MARKET, frutos orgânicos e “fair trade” rimam, aos sábados e domingos, com vinhos orgânicos, biodinâmicos e outros. Excelentes exemplares naturais como os rieslings da vinícola Felton Road ou os chenin blanc da Milton Vineyard, são vendidos na Wine Direct, loja que fica no galpão que abraça a feira, que também traz queijos franceses, porcelana provençal e antiguidades.
E, por falar em Europa, o “terroir” neozelandês está virando coisa cada vez mais séria. Uma das porções mais nobres de terra, principalmente para tintos, fica em Hawke’s Bay e se chama Gimblett Gravels. O rio Ngaruroro, que transbordou em 1867 deixou esse pote de ouro em forma de cascalho que permite a maturação ideal das uvas, num local geograficamente protegido das fortes brisas marítimas. O solo atua como “cobertor térmico” irradiando calor quando necessário e vinícolas de excelência, como Trinity Hills e Craggy Range orgulhosamente ostentam esse “sobrenome” em seus rótulos.
E a cultura do vinho no País não pára por aí: a sorveteria GIAPO ganhou o prêmio de melhor sorvete artesanal da Nova Zelândia, usando 60% de massa de cacau orgânico na mistura do sorvete para lhe conferir leveza, e criando até 1.000 novos sabores por ano. Naquela terra, não podia faltar o de chocolate com...? Vinho tinto, é claro.
Pra quem quer pequenas escapadas urbanas, nós brasileiros, acostumados com um país de dimensões continentais, estranhamos que a 40 minutos de ferry, se encontre um Shangri-lá na forma da pequena ilha de Waiheke, com quase duas dezenas de vinícolas, sendo uma das mais lindas a Mudbrick.
Vinícola Mudbrick |
Com sorte, você esbarra em Nick Jones, um dos sócios e figura adorável, que trata de manter em segredo o blend do arredondado “Velvet”, um dos seus vinhos ícone.
A vinícola tem um bistrô a céu aberto, excelente, com direito a vieiras, ombrelones e ostras, e também um restaurante um pouco mais formal num espaço fechado, com menus degustação. Mas ambos têm algo em comum: a vista no melhor estilo “me belisca que estou sonhando” e a possibilidade do passeio pelos vinhedos após a refeição.
O delicioso restaurante com vista de perder o fôlego, entre um gole e outro, da vinícola Mudbrick. |
Mas como vim parar aqui mesmo? Essa pergunta me fiz, copo na mão, na mesa de piquenique da Brick Bay Vineyard, após percorrer os 2km de trilha, e babar com mais de 50 obras de arte contemporânea a céu aberto que a vinícola exibe, com artistas em contínua renovação. De olhos vidrados na escultura de Gregor Kregar e sua trilha prateada de fragmentos que boiava no lago, percebi que, tal qual João e Maria, deixei a Nova Zelândia com outro tipo de trilha: a de lembranças que me faziam querer voltar. A vontade foi tão forte que me convidaram para ser Cônsul Honorária do País. E só tenho a agradecer pelo carinho com que receberam esta carioca faminta que, lá no fundo, estava fadada a se encantar por um povo que se auto denomina... kiwi.
Silver Fern, a samambaia prateada, símbolo da Nova Zelândia. |
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