Fim de foodie em agosto.


Era foodie, coitado. Sabe-se lá como aconteceu.

Há quem diga que tudo começou numa tarde de Outono, em 2003, quando um cozinheiro respeitado lançou-lhe os maiores elogios diante de amigos, porque matou, de primeira, o tempero secreto de sua receita mais aplaudida. Percebeu os olhares de admiração do grupo, corou, sorriu, se achou ridículo por ter corado, abafou o sorriso, empertigou-se na cadeira e caprichou no olhar blasé. O comentário lhe tirou o sono. Algo havia mudado. Era uma pessoa mediana, sem projeção alguma, e jamais recebera tamanha atenção.


O jantar foi o pontapé inicial de uma carreira auto ofertada de obsessão com ingredientes, preparações, utensílios e que tais. Decidiu investir grande parte de seu escanzelado contracheque em assinaturas digitais de revistas e comprou um organizador que recheou com cadernos de comida. Lia furiosamente, madrugada adentro, publicações gastronômicas em japonês com suada tradução do Google, somente para impressionar os amigos na Liberdade.Soltava, aqui e ali, frases como: “perceberam que esse queijo de cabra tem o aroma do primeiro pasto da Primavera?”, enquanto esquadrinhava a reação dos presentes e apertava o canto da mesa - gesto involuntário destinado a conter, desde a adolescência, momentos de grande excitação física.


Decidiu curtir menos e menos posts no Instagram, já que isso contribuía para a imagem de foodie implacável. Cada curtida devia ser tomada, pelo recipiente, como elogio absolutamente invulgar. Pouco importava que sua mãe passasse a noite fazendo um carbonara e, orgulhosa, lançasse o feito no facebook. Não curtia. Era mãe, mas não usava pecorino, fazia com bacon comum e juntava creme à receita. O pior: o marcava nas fotos. “Que vergonha”, pensou. Conversou sobre o assunto “pratos e marcações” num almoço de domingo. Aconselhou que não houvesse. Ela ficou triste, mas era melhor assim.


Descobriu que, quanto menos falasse, menos errava. Era importante não claudicar. Uma única observação bem colocada poderia lhe render mais créditos. Ficou mais e mais econômico nas palavras. No metrô, decidiu passar direto por aquele imbecil que não sabia diferenciar um dashi assari de um kotteri.


Um dia, tombou de amores por uma moça bonita. Laurinda. Era inteligente, divertida, engataram um drink. Ficou aflito quando não prestou atenção às explicações sobre o Vieux Carré do melhor bartender da cidade, movimento calculado para impressionar. Era por demais falante a moça, e impossível de aculturar. Conseguiu finalmente captar sua atenção ao descrever a azeitona gordal do balcão, carnuda e não aderente ao caroço, que conhecera em Sevilha. Interessada, fechou os olhos e saboreou com entusiasmo. Ele apertou o canto da mesa.


O romance durou alguns meses. Ela fazia perguntas sobre seus irmãos, seu cachorro e sua mãe, enquanto ele seguia com a tourada, desviando com pesada capa imaginária os interesses menores da moça na direção dos verdadeiramente relevantes na vida, como a kombucha com especiarias que provara na semana anterior.


Dado o obsessivo mundo em que vivia, não foi com surpresa que soubemos que tudo acabou em pizza. Num domingo de abril, sonhava com o corniccione crocante e a massa leve da margherita de sua pizzaria favorita, quando ouviu a pergunta: “o Sr. poderia colocar tomates secos na minha?”. Rompeu abruptamente. Ela ficou triste, mas melhor assim.


Soube, tempos depois, que foi vista com um sujeito alegre e bonachão, que só bebia carménère. Parecia firme a coisa. Decidiu não pensar mais naquilo, amaldiçoou mais um foodtruck e encomendou um café produzido no sopé do Monte Lenana, com torrefação do Luiz, o único em quem confiava. 


Aquilo deveria anima-lo.Suas aparições se tornaram cada vez mais raras. Alguns diziam que havia se mudado para Tóquio; outros, que havia enlouquecido.Numa manhã de agosto, a polícia encontra seu corpo estirado sobre um cesto de tomates secos a granel, na mercearia da esquina de sua casa. Tinha os pulsos cortados com um pedaço de vidro de conserva de azeitona gordal. Sob as mãos ensanguentadas, cruzadas sobre o peito, uma foto de Laurinda.


Era foodie, coitado. Sabe-se lá como aconteceu.

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.