Certo dia, lá pelos 4 anos, fui parar no hall do elevador às lágrimas, travesseiro numa mão, 'pelelinho' (cobertor de estimação) na outra, cansada daquela vida. Dizia: ah, meu deus do céu! Ai, minha nossa senhora! Como posso continuar vivendo nessa casa? Tinha uns 5 anos e era a gota d’água, estava claro. Só não consegui alcançar o botão para concretizar a fuga, mas chegara no limite. Esticaram um colchão ao lado da cama de meus pais em cativeiro preventivo. Adormeci, frustrada.
Já com extenuados 6 anos num dia absolutamente sem incidentes, nos puseram sentados, banho tomado, pufe bege, a ver televisão. Minha mãe, enternecida, constatou que apesar dos constantes maus-tratos, a filha fitava o irmão com meiguice e que, surpreendentemente, numa estratégia reversa, teria apanhado seu bracinho gorducho e iniciado um carinho. Cismática, comenta com a babá: ela nunca revida, tadinha.
Naquele instante, ele me sorri, meio confuso, e volta a atenção ao Ultraman. Nos deram as costas por um segundo e veio o grito estrídulo. A cena impensável se resumia a uma menina de camisola, com mãos e dentes cravejados no antebraço da vítima, numa mordida paralisante. Meu irmão deu um guincho agudo e ficou lá, gelificado, olhos arregalados, inabilitado pelo choque. Fiquei um bom tempo com os dentes fincados, olhando-o nos olhos, a examinar seu pânico. Tentaram nos separar por algum tempo, mas as presas firmes discordavam. Quando finalmente larguei o osso, seu choro obstruído soltou-se, navegando na mágoa incrédula.
Desse dia em diante, jamais voltei a fazer a pergunta assustada. Tinha escolhido meu lado no mundo: eu mordia.
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