Meu nome não é Funes.


Se Borges morasse no Flamengo, babau Funes. Bom mesmo era Pereira, o memorioso, há mais de 50 anos, paletó branco, num restaurante de esquina do bairro, sem nunca, jamais, trocar um pedido.

O primeiro encontro costumava assustar os clientes. Pra beber? Uma água com gás, um vinho branco, um refrigerante e uma dose de whisky, copo baixo, sem gelo. Não piscava, não anotava, lá ia ele. Tudo certo na fase um, pouco desafiadora. Então, vinha o momento “quero a salada verde de entrada e um filé com molho à parte, só que com o acompanhamento do frango. ela, um atum com batatas, mas um pouco mais passado porque não gosta daquela coisa crua, e pede com molho extra sem miséria! também vamos de peixe assado com pouquíssimo arroz e mais farofa pelo amor de deus, um hambúrguer com queijo sem cebola, tomate e gergelim, mas esquece a salada e pede só as fritas. ah! traz o prato do menino primeiro? mas ele gosta com maionese da casa, e a minha salada verde, que é a única entrada, junto com o prato principal dos outros pra turma não esperar. me diz uma coisa, você tem pudim de leite?”. De pronto, respondia “temos” batendo com a ponta dos dedos no canto da mesa, e ameaçava dar a meia volta em direção à cozinha. Mas o Senhor não vai anotar? Era aí que o pudim desandava.

Nada aborrecia mais o Pereira do que a contestação de sua memória, engrossada com rapadura batida na Paraíba da infância. Não esquecera o horário combinado com o primo pra sair lá de Jericó, Catolé do Rocha, que engatou três caronas com três amigos de amigos, nomes desconhecidos, horários diferentes, todos imediatamente memorizados até Campina Grande, pra não falhar. Tampouco apagou da lembrança o nome de cada parada - eram muitas naquele tempo - distribuídas por 5 dias. Currais Novos, Massaroca, Umburanas, Irecê, Ibotirama, Tabocas do Brejo Velho, até chegar em Brasília e de lá outras tantas rumo ao Rio de Janeiro onde moraria com outros oito amigos de amigos, sendo dois Franciscos, um bom e aquele outro, o Laureano, que tentou dar a volta no grupo na hora do “racha” do quarto e sala, no Centro. De lá guardou cada casa, moleque indo pra escola, prédio, poste, cor, posto de saúde, senhora na janela, porteiro, portaria, banco, até sua primeira e última entrevista de emprego, fazia 50 anos, onde agora um infeliz lhe perguntava se não ia anotar o pedido.

Já volto, dizia seco e abaixava a cabeça que nem touro pro toureiro, mirando o contendedor por cima dos óculos. O troco era certeiro, exato, com os devidos molhos, trocas, excessos e supressões, com pudim de cortesia xeque-mate encomendando o respeito, não fosse a eficiência, suficiente.

Um dia veio o patrão, um aparelho na mão. Era uma tal comanda eletrônica, diziam, com um pitoco preto que, apertava aqui, saía um papel lá na cozinha que punha o povo pra trabalhar. Tinha uma moça que fazia o treinamento, letras, números, códigos, letras, letras, letras. Silêncio. Dor no peito. Não era bom de letras. Nunca aprendeu a ler.

Padeceu, era difícil, queria muito, não deu. Fez um curso, desistiu. Assinou a admissão, folha de ponto, entra ano, sai ano, nunca teve problemas. Guedes, o menino novo, lhe cantava os avisos no quadro e tudo certo, prédio, banco, portaria, boteco, poste até a porta de casa, todos os dias, por 50 anos.

Foi falar com o patrão. Eu não sabia! Mas como? Esse tempo todo? É verdade, não quis dizer, não foi falta de respeito, não Senhor, mas nunca atrapalhou o serviço. Ora veja, me desculpe, mas não dá pra continuar no salão. Estamos trocando tudo, tem que modernizar, é mais seguro, todos vão usar. Não queria perder o emprego, patrão. Vamos ver, então, se dá pra ficar na recepção, sem comissão. Sem comissão? Silêncio. Dor no peito.

Treinamentos, instalações, ele na porta. Era um tal de aperta aqui, cospe prato lá, num salão cheio de amigos distantes, que tinha espichado como um túnel, pra bem longe dele. A cada boa tarde na porta - tá aqui agora? - via o corpo teimoso ensaiar a meia volta rumo à cozinha, querendo levar o pedido do Seu Antônio, marido da Dona Fernanda, que gosta de uma cachaça branquinha e só senta na mesa três.

Foram semanas de boa tarde e boa noite e sabe-se lá porquê, viu o salão mudar de cor num sábado. Tinha muita ruga na testa, mão levantada, voz exaltada e olhar tenso no fim daquele túnel. Incrédulo, viu duas mesas saírem sem pagar, pés sovando o caminho até a porta, resmungos quentes lhe embaçando as lentes. Chegou junto do amigo. O que foi? Tá falhando o wi-fi e sem ele o pedido não chega na cozinha. Já ligaram pra empresa de telefonia e o cara não veio, faz 3 horas. Hoje é sábado, tá na cara que não vem. Ontem deu um pipoco na luz, queimou o servidor, o técnico demorou. Viu a confusão no jantar? Não, rapaz, eu estava na porta. Dia desses, travou o código do filé e só pudemos vender peixe, frango e massa. Imagine. Só peixe, frango e massa.

Olhou por cima dos óculos, abandonou o novo posto e lá foi Pereira, caminhando firme sobre antigos passos que finalmente se reconheciam, rumo ao bar. Vê aqui um suco de laranja pra Dona Irene, senão a glicose baixa e o bicho vai pegar. Entrega o suco, olhos gratos, sorriso em troca, e engata a pergunta intrêmula: bife à milanesa com salada de batatas e o cozido de sempre, certo? Sem voltar para a cozinha, foi passando mesa em mesa, adições, extrações, exceções, molho à parte, mais batata, suco, cerveja, vinho, vinho. Foram 95 bebidas, 65 entradas, 154 pratos e 43 sobremesas, sem contar com duas saladas de frutas, antes de bater os dedos no canto da última mesa e torcer o corpo em meia volta, rumo à cozinha. Por mais de 20 minutos, clientes, garçons e cozinheiros, emudecidos, ouviam sua voz ritmada e calma, declamando prato a prato, em compasso andante moderato.

Voltou no dia seguinte, tiraram Pereira da porta, fizeram obra na cozinha, construindo um cantinho lá dentro pra ele poder “cantar”.

E até o fim dos seus dias, nas festas de sua família, juntavam netos, bisnetos, cunhados, sobrinhos, sobrinhos-netos, concunhados, primos e tias a ouvir suas estórias de infinita memória, dançadas com o cozinheiro na valsa do marcha e sai.

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.