Memórias revisitadas - Côte d'Azur



Quando percorri a Côte d’Azur pela primeira vez, tinha lá uns 20 anos. Meu pai decidira fazer uma viagem sozinho com cada um dos filhos e era a minha vez.  Me lembro como se fosse hoje do brilho em seus olhos ao descrever a textura, a cor e o vigor de uma folha de sua salada. Meu pai era assim: guloso. À época, escutei, concordei, prestei imensa atenção e fiquei muito animada com toda a sua alegria, mas não entendi. Para ele, a Côte d’Azur  não era feita de iates, luxo ou prédios suntuosos. Era uma sucessão de excelentes aspargos, queijos e frutas.

A experiência é um alfabeto que só se aprende no momento certo. Repetindo, agora, o roteiro que fiz então - muitos anos, viagens e restaurantes depois - aprendi a "ler"a Côte de meu pai, feita de legumes, verduras e frutas em seu ápice, sempre na safra, e de pequenos bistrôs que trabalham com produtos de excelência, graças a uma cultura milenar voltada para o ingrediente.

É só a Côte, sem nenhuma frescura e com muito frescor.

ANTIBES
A histórica Boulangerie Veziano e a pissaladière
preferida de Alain Ducasse.
A primeira troca da frescura pelo frescor pode se dar em Antibes, a começar pela BOULANGERIE VEZIANO. Apesar de estar desde 1924 no mapa, só se fez saber inequivocamente quando Alain Ducasse a cita como o melhor endereço da França para se comer o ícone da tradição provençal: a PISSALADIÈRE. A massa – entre um pão e uma pizza – é uma especialidade medieval de Nice. Vem com cebolas cozidas lentamente por horas a fio, além de alho, anchovas e azeitonas. A felicidade e a entrada no céu custam apenas 1,90 euro.

Os pães da Veziano também podem ser encontrados vinte passos adiante no moderno e minimalista L’ARMOISE. A lousa traz apenas uma dupla de entradas, pratos e sobremesas, como convém a um bistrô que trabalha com produtos frescos. Tudo que comi pelas mãos do chef Laurent Parrinello estava ótimo, desde a terrine de coelho com alcachofras de amuse bouche, até um linguado ao molho grenobloise cercado de ingredientes no ápice da safra, como aspargos verdes, ervilhas e purê delicado de couve flor. O mercado de frutas e legumes do centro histórico fica tão próximo que poderia lhe servir de despensa. Adoro isso.

NICE
Já em Nice, o chef Dominique Le Stanc, dissidente do estrelado Chantecler, do Hotel Negresco, decidiu mudar radicalmente de vida e abrir o LA MERENDA, um espaço acanhado com mesas tão próximas que se ouve até pensamento. A casa não tem telefone, não aceita reservas ou cartões de crédito. Não se deixe intimidar e devore uma bela porção de POUTINES, termo popular para os alevinos de sardinhas ou anchovas pescados nas águas de Nice desde tempos remotos. Comuns nessa época do ano, os alevinos - peixes no estágio que sucede à eclosão das ovas - são normalmente servidos sobre o pão com gotinhas de limão. É como o tartare de peixe mais macio que você já comeu. Abuse dos vinhos da Côte de Provence, leves, frutados e ideais para o Verão que se aproxima, a 9 euros o copo. Chegue cedo. Às 12:30hs o restaurante já está lotado.


As estranhas e cobiçadas "poutines".
LA TURBIE
Bons lugares trabalham com bons ingredientes. Fui ao HOSTELLERIE JERÔME, em La Turbie, restaurante tradicional com duas estrelas Michelin, e no bistrô dos mesmos proprietários, o CAFÉ DE LA FONTAINE. Ainda que as propostas não sejam comparáveis – o primeiro é instalado num mosteiro cisterciense do séc.13, com pratos elaborados, serviço formal e imensa carta de vinhos, e o segundo é um restaurante simples  – percebe-se que comer bem depende do cuidado que a casa tem na escolha de produtos bons e frescos. O CAFÉ DE LA FONTAINE é um restaurante descontraído e agradável que vive lotado graças a ter uma das melhores relações custo-benefício da Côte d’Azur. Por 28 euros, se escolhe entrada, principal e sobremesa compostos de produtos recém saídos do mercado, e come-se divinamente. Comecei com um delicioso choco com puntarelle, passando por um ravióli de vitela e espinafre, com ervilhas redondas e quase crocantes ao molho de queijos locais, e terminei com uma torta de limão com sorbet. Excelente.



ÈZE
A mesma sensação tive ao visitar o restaurante gastronômico do HOTEL LA CHÈVRE D’OR, em Èze, e retornar dias depois para um almoço no LES RAMPARTS, no terraço do mesmo hotel, ambos com a vista deslumbrante para os infinitos tons de azul que batizam a costa. Além do ambiente informal ao ar livre, serviço menos burocrático e preparações simples do TERRAÇO que resultaram numa conta que custou apenas um terço da primeira, tive a prova cabal de que a estação faz o prato. No auge da safra, os sabores explodem na boca como adolescentes, vibrantes e no ápice. Comi uma salada que seria apenas uma salada, não estivessem os brotos de rúcula incrivelmente picantes na Primavera, sabor potencializado pelo PISTOU, versão provençal do pesto, com azeite, basílico e alho, todos em plena estação. Outro grande campeão foi um simples linguine, absolutamente transformado pelo vigor do limão.

MONTE CARLO
Se sua fome é de ostras, não deixe de ir até Monte Carlo para abocanhar uma das especialidades locais: as “PÉROLAS DE MÔNACO”, ostras que nascem na falésia do Principado. São levadas à Bretanha para a “engorda” e em seguida voltam às bacias de “affinage” (as “claires”) onde definem sua personalidade. E o melhor lugar para prova-las é o AVENUE 31, lugar “da moda” de arquitetura contemporânea, recheado de gente bonita com jeito e atitude de modelo, graças às formulas leves feitas de bento box, sushi ou peixe do dia a apenas 24 euros incluindo entrada e taça de vinho.


Pérolas de Mônaco: ostras que só existem no Principado.
CAP D’ANTIBES
Uma viagem costeira não existe sem muitos peixes pelo caminho. Os melhores e mais abundantes são o Dourado Real, Dentice, Saint Pierre, Chapon de Mer e Loup, todos presentes no cardápio do LE BACON, em Cap d’Antibes. O restaurante, fundado em 1950, tem a reputação de oferecer os exemplares mais frescos do mercado. Pessoalmente acho os peixes na França muito hidratados no preparo o que lhes tira um pouco o sabor. Minha pedida portanto é sempre a de um peixe grelhado ou em papillote. Mas guarde lugar para a sobremesa! A torta feita de morangos do bosque, frutos pequeninhos e pálidos, que pouco prometem visualmente, estava deliciosa.


Torta de morangos do bosque do Le Bacon, a melhor da viagem.
MENTON
Mas ninguém traduz melhor o perfume das ervas que permeiam a Côte como o MIRAZUR, onde fiz uma das melhores refeições de minha vida. O salão claro e limpo tem amplos janelões que se debruçam sobre a baía de Menton. A manteiga era de anchovas frescas pescadas naquela manhã, e os pratos, pontuados por ervas selvagens e frescas como a “Mouron des oiseaux”, flor de borragem, flor de ervilhas ou o alho selvagem dos campos conhecido como “ail des ours”, entre outros aromas inesquecíveis. O cardápio “carta branca”, de 8 pratos, trouxe delícias da estação como os aspargos selvagens em duas texturas - crus e escaldados - com maçã verde, creme de iogurte, grapefruit e toque de mel com baunilha. Chorei com o melhor timo que já comi, feito com suco forte de cacau e ervilhas “nature” e em purê; um toque essencial de vinagrete de framboesa com suco de ervas locais concedia a acidez necessária para contrabalançar a gordura. A sobremesa levíssima era um cannelloni feito com o perfume de angélica, sorbet de iogurte, suco de maçã e gengibre.


Poderia falar sobre uma dezena de outros lugares, mas deixo seu estômago criar novas memórias. Pra mim a Côte d’Azur é isso aí: poesia ingerível.


Mirazur: um restaurante inesquecível.

BOULANGERIE VEZIANO
www.lepain-jpv.com
2, Rue de la Pompe  - Vieil Antibes (Centro Histórico)
04 93 34 05 46
aberta de terça a quinta das 6:00hs às 12:45 e das 16:30hs às 19:30hs

L’ARMOISE
2, Rue de la Tourraque – Antibes
04 92 94 96 13
fechado aos sábados para o almoço, domingo para jantar e segundas-feiras
turno do almoço nos dias restaurantes começa às 12:30hs
turno do jantar começa às 19:30

LA MERENDA
4, Rue Raoul Bosio – Nice
(como disse, não tem telefone, nem cartão de crédito, nem...)

CAFÉ DE LA FONTAINE
www.hostelleriejerome.com/pages/le-cafe-de-la-fontaine.cfm
4, Avenue du Général de Gaulle
04 93 28 52 79
aberto todos os dias, desde às 7:30hs da manhã

LES REMPARTS (no Hotel CHÈVRE D’OR)
Rue du Barri – Èze Village
04 92 10 66 61
Aberto todos os dias, entre maio e outubro (de acordo com o tempo)

AVENUE 31
www.avenue31.mc
31, Avenue Princesse Grasse – Monte Carlo
377 97 70 31 31
Aberto todos os dias de meio-dia às 14:30hs e de 20hs à meia-noite.

RESTAURANT DE BACON
Boulevard de Bacon – Cap d’Antibes
04 93 61 50 02
fechado às segundas

MIRAZUR
30, Avenue Aristide Briand
04 92 41 86 86
aberto de meados de fevereiro a início  de novembro
de quarta a domingo, almoço e jantar
aos sábados e domingos para almoço


Torta de Menton:
a prima da Pissaladière, sem anchovas.
Éze.



3 comentários:

  1. Cris,

    estive na Cote d'azur em 2005. Tenho planejado de conhecer a borgonha, há tempos. Mas depois desse seu post, acho que vou retornar para o Mediterrâneo.
    Excelente.
    Bjs

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  2. Espetacular! Vai me fazer mudar todo o planejamento de minha viagem... bjs

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.