A que ponto chegamos?




Há grandes questões gastronômicas que me afligem. Que nós, brasileiros, somos criativos, todos sabemos, mas por que diabos chegamos ao ponto de inventar novos pontos?

Jamais encontrei, em literatura ou curso de gastronomia algum, os verbetes “ao ponto, pra bem” ou “ao ponto, pra mal”. São denominações 100% brasileiras, com origem garantida na nossa cabeça de bagre, haveria quem pensasse. Mas esse raciocínio simplista seria uma baita injustiça.

Cheguei à conclusão de que estamos presos entre dois mundos: o da cultura gastronômica alcançada e a deficiência técnica dos cozinheiros. E a pobre interseção entre eles chama-se garçom.

Há sempre um ponto tecnicamente ideal para a degustação de determinado peixe, caça, massa ou carne. É o ponto em que o sabor é maximizado, a experiência é potencializada e se desfruta o melhor do alimento.

Os cozinheiros brasileiros, formados na escola européia de gastronomia, tentaram impor à força essa cultura, contrária à crença de nossas avós que teimavam em dizer que criança não pode comer carne com “sangue”. Legumes e carnes tiveram sua alma impiedosamente arrancada depois da colheita ou abate. Foram cozidos, fritos ou escaldados à exaustão, de forma a manter as bactérias bem longe de sua prole.

Neste momento, o leitor gourmet torce o nariz pra sua própria avó e a acusa de ignorante gastronômica. Ora... graças aos índios herdamos o hábito de um banho por dia, não dos europeus. Somos, sim, um país culturalmente obcecado por higiene. Os hábitos de países muito mais frios em que os riscos de proliferação de bactérias eram menores poderiam não ser verdade aqui. Então, antes de atirar a primeira pedra ou filé carbonizado, temos que entender o momento em que nos encontramos e o sofrimento dos garçons, infelizes tradutores da bagagem gastronômica de cada cliente.

Acho que a história foi assim:

Ao final de um longo turno de almoço, um garçom observa um cliente investigando a seção de carnes do cardápio. O comensal, sob o inescrupuloso julgamento do seu cunhado mala metido a besta, pede um 'filé ao ponto' a despeito da saudade que tinha daquele torradinho, delicioso e bem fritinho que sua mãe fazia.

O garçom, suando frio, lembra de duas cenas: de um lado o cozinheiro, cutelo na mão, ameaça: “se eu mandar ‘ao ponto’ e o cliente pedir pra passar mais, você vai ver só o que te acontece! Tem que explicar o ponto da casa, cara!”. De outro, a cena que já testemunhou 487 vezes, em que, ao entregar a carne no ponto correto, o cliente encara o gesto como insulto pessoal à memória de sua mãe e lança ao garçom um olhar revoltado. Espremendo com o garfo o naco de carne que quase (!) colocara na boca, dirá: “Mas olhe só!!! Isso não é ‘ao ponto’! Isso aqui tá cheio de sangue!”

Foi então, naquele dia, em que o garçom hesitante e cansado, teve uma epifania e arriscou: “o senhor quer a carne ao ponto... (longa pausa) ..... pra bem?”. O cliente desconcertado, recebeu o termo com estranheza, mas  gentilmente acatou já que a indefinição do cozimento lhe era favorável diante do cunhado.

No jantar, o cliente é outro. É o cara exausto de pedir ao ponto e receber carne bem passada. Ele sabe, por larga experiência, que frisar não basta e se torna obsessivo. Em alguns lugares, recebeu tartare, em outros recebeu ao ponto. Pelo sim, pelo não, recheia o pedido de detalhes como “assim bem rosada” ou “suculenta”, “sabe... dourada por fora mas conservando o suco?, “mas fria por dentro, não! Olhe lá!”, sem saber ao certo qual será a interpretação do seu pedido. E o mesmo garçom, fantástico psicólogo formado pela faculdade da vida, oferece o lindo e indefectível “ao ponto pra mal?”. Bingo!

Nos dois casos, a questão é uma só: ainda que o ponto não venha a contento, já estamos na área cinza, não da cor da carne, mas do “o que será que eu pedi?”.

A verdade gastronômica transcendente não existe. O que existe no dia a dia é um embate entre gosto e “supostas” verdades. Por isso, não descontem no garçom. Como nos grandes questionamentos da vida ou nas abobrinhas que escrevo, chegamos exatamente no ponto entre o “bem”... e o “mal”.



2 comentários:

  1. Você não escreve "abobrinhas" , ajuda e muito, à educação de filhos e netos de clientes que se desfalecem com as delícias que você nos proporciona ! Quanto ao assunto proposto "passado para bem ou para mal" o garço e, principalmente o chef deve ficar muito p ,mal humorado , pois ele atende ao que o cliente pediu e espero que o meu não seja o seguinte a ser elaborado, pois o dito cujo deverá estar, como eu ficaria, muito irritado !Garanto que tanto o garçon como o cozinheiro gostaria de mandar o indigitado ir comer em casa mas, e nós , né Cris !
    Como deve ser fifícil administrar uma cosinha e segurar a reação natural dos atendentes !
    Para variar, adorei a crônica !

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  2. Fantástico, é assim mesmo que ocorre nos restaurantes rs você consegue expressar maravilhosamente bem esse drama " ao ponto" ! rsrs

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.