Seus belos lábios verdes... - Auckland, Nova Zelândia

[texto feito especialmente para o Caderno Ela Gourmet, do Jornal O Globo]



Do alto da estrutura mais alta do Hemisfério Sul, a Sky Tower, reafirmava minha covardia a cada pessoa que via saltar de bungee jump, intrepidamente, em direção ao asfalto. Um sonoro ronco do meu estômago – a porção mais corajosa que carrego - anunciou que nem tudo estava perdido. A fome lembrou que a gastronomia de Auckland resumia a diversidade da Nova Zelândia, país multicultural e ímpar que espelha as influências maori, europeia, asiática e das Ilhas do Pacífico. Olhei para a multidão lá embaixo e, aliviada, pensei: havia mais de um jeito de mergulhar bravamente naquele País. Lancei-me à comilança.

O QUE COMER...

DO MAR
De acordo com a lenda maori, a Ilha Norte neozelandesa é um peixe fisgado pelo semideus Maui, e a Ilha Sul, sua canoa. Não à tôa, a primeira e óbvia pedida são peixes, moluscos, crustáceos, algas e aparentados, abundantes num País de costa imensa, banhada por águas límpidas e geladas. A qualidade indiscutível dos produtos garante mais de NZ$300 milhões de dólares neozelandeses por ano (aprox. R$570 milhões) aos cofres kiwis, e o respeito ancestral pelo mar, lhes faz investir mais de NZ$20 milhões (quase R$40 milhões de dólares americanos) anualmente na pesquisa do impacto ambiental da pesca e aquicultura.

Amêijoas. Sempre uma deliciosa escolha no País.
Amêijoas (clams)
Na faixa de areia onde as ondas se quebram, surgem diversas espécies de amêijoas nativas que fazem brilhar qualquer cardápio da cidade. As “diamond shell”, encontradas de 3 a 5 metros de profundidade, são gordas,  doces, amanteigadas e com toque de noz na boca. As “moon shell” são mais firmes, têm  gosto profundo e marinho, e lembram carne quando cozidas. Deliciosas, são colhidas na zona entre 5 e 10 metros. As “storm” são carnudas, imensas como vieiras, e têm aroma de crustáceos. Doces e de textura macia, as “tuatua” são as mais salinas de todas, com sabor que lembra algas e consideradas uma iguaria para os Maori, fazendo parte de sua alimentação desde tempos remotos. Espetaculares. A maior parte das amêijoas que encontrei nos cardápios vinha da região de Cloudy Bay.

Blue Cod
Apesar da palavra “cod” denotar, não é um tipo de bacalhau. É peixe de carne delicada e suculenta, que derrete na boca, encontrado em águas rasas de costas rochosas, exclusivamente na Nova Zelândia. É azul esverdeado e se alimenta de peixes pequenos e caranguejos. Reproduz-se na Primavera, tem a pesca controlada e, curiosamente,  pode mudar de macho para fêmea.

Hapuku
Podendo pesar até 100kg e viver uns 60 anos, um dos peixes mais saborosos da Nova Zelândia é o Hapuku ou “wreckfish”, nome dado pelos colonos neozelandeses que o avistaram pela primeira vez em destroços de navios afundados. De carne branca e firme, são o sonho dos chefs, porque além de deliciosos, podem ser assados, grelhados ou fritos.

Hapuku no Soul Bar & Bistrô, "escurecido" por especiarias, sobre skordalia de amêndoas.

Mexilhões de lábios verdes
Os divinos e gigantes mexilhões da costa neozelandesa têm um encantador friso verde no contorno de sua concha. Como se não bastasse ser imenso, sua proporção carne/casca também é a maior dentre todos os mexilhões. Apesar do lado “bruto”, têm consistência macia, e são tão delicados que parecem adocicados. Crescem no golfo de Marlborough e na península de Coromandel, e não me esqueço do dia que aqueles lábios se juntaram aos meus...


Ostras de Bluff
No frio silencioso das límpidas águas do Estreito de Fovreaux, avolumam-se lentamente as gordas e deliciosas Bluff Oysters, variedade que está entre as mais saborosas do mundo. Carnudas, “metálicas” e suculentas, são irresistíveis, especialmente quando acompanhadas dos Sauvignon Blanc de Marlborough.

Salmão Quinnat
A adoração que os brasileiros têm por salmão é grande elogio a um peixe que não existe em nosso País e só chega aqui, infelizmente, congelado. O Quinnat, maior peixe de água doce da Nova Zelândia, tem carne divina, untuosa, de cor de laranja vibrante. Nasce nos calmos tributários dos rios, aos pés das montanhas. Quando atinge 12 cm, migra para o mar, onde seus movimentos não são conhecidos. Retorna aos rios da Ilha Sul, nadando contra a corrente de fevereiro a abril, já com quase 10 quilos. Desova em águas tranquilas, aos pés das mesmas montanhas... e morre. Um ciclo poético que fica melhor quando desemboca no meu estômago.

DA TERRA

Cordeiro
Provavelmente a carne mais emblemática do País, e também uma das mais saborosas. Dele, se aproveita tudo: dos já famosos costela e lombo, até paleta, pescoço, perna e outros cortes diferentes. O cordeiro local não passa pelo método norte-americano de alimentar o animal somente com grãos antes do abate de forma a engorda-lo rapidamente. O gado se alimente em regime de pastoreio predominantemente orgânico, o que deixa o sabor da carne bem mais profundo e presente.

Feijoa
Apesar de ser nativa do Brasil, foi introduzida na Nova Zelândia em 1920 e tornou-se extremamente popular no País. A fruta, do tamanho de um ovo, está em plena safra de março a junho. Há quem diga que tem sabor de abacaxi; outros dizem que parece uma goiaba com toque de morango. Por fora, lembra um figo, e tem nome que lembra feijão. Uma verdadeira contradição.

Mel de Manuka
O néctar que as abelhas europeias produzem a partir do arbusto local chamado “manuka” é o mais viscoso dentre todos os méis conhecidos e, depois de prova-lo, minha vontade era a de despejá-lo em cima de tudo que via pela frente para fazer a vida melhor. De aroma herbáceo e terroso, enfeita as mais diversas receitas, faz ótimos produtos de beleza e ainda é conhecido pelos seus efeitos terapêuticos.

Pannacota de chá verde com kiwi, figos desidratados, caqui e anis,
no Clooney. A melhor sobremesa da viagem.

Kiwi
Muitos acham que o fruto é nativo porque os habitantes do País se autodenominam kiwis. De fato, o fruto peludo tem origem asiática e chegou à Nova Zelândia com o nome de groselha chinesa, com seu arbusto utilizado eminentemente para fins ornamentais. Os neozelandeses, no entanto, reconheceram seu potencial comercial como alimento, e o rebatizaram em homenagem a um pequeno pássaro peludo local: o kiwi.  

Manteiga, manteiga! Queijo, queijo!
Em 1880, o excedente de manteiga dos fazendeiros era trocado por equipamentos agrícolas e suprimentos. Em 1884, havia 20 fábricas de manteiga e queijos. Em 1920, já eram 600. Hoje, o País é responsável por um terço do comércio mundial de produtos lácteos. Da espuma que cobre o café ou deliciosos sorvetes, até as manteigas batidas dos couvert de todo o País, a via láctea é o caminho a seguir. Denso, rico e divino, o leite é um dos meus produtos preferidos na Nova Zelândia.

Camembert de queijo de cabra da queijaria Over the Moon.
Delicioso.

Veado
A Nova Zelândia tem a maior criação de veados do mundo e o cervídeo é, portanto, figurinha fácil nos cardápios de Auckland. O termo “venison” indica o animal caçado, enquanto o termo “deer” denota que foi abatido numa fazenda. De sabor profundo e almiscarado, é também uma das carnes mais macias que já vi, com a vantagem de ser magra, saudável e absolutamente perfeita quando mal passada.

ONDE COMER...

As regiões da Ponsonby Road, SkyCity e Central Business District (CBD) constituem a maior parte da cena gastronômica da cidade, abraçando desde os restaurantes premiados, passando pelos “da moda” até aos simplesmente “deliciosos de estar”.

Baduzzi
Quando se pensa que uma boa casa italiana precisa de bons grãos, legumes, carnes e queijos, a distância entre a Nova Zelândia e a Itália praticamente inexiste. Aberto há menos de um ano, é do mesmo dono do também badalado The Grove. Todas as massas são feitas na casa, e os queijos, felizmente, são feitos pelas várias vaquinhas e ovelhas locais. As porções não são enormes e o serviço é ímpar.
www.baduzzi.co.nz
10-26 Jellicoe Street, Wynyard Quarter, CBD
+64.9.309 9339

Lasagnette com um ragú espetacular de cordeiro, idem. No Baduzzi.

Brick Bay Vineyard
Uma trilha de 2km a céu aberto, a 50 minutos de Auckland, abriga uma coleção lindíssima de esculturas contemporâneas em meio a uma floresta, vinhedos e lagos. O ponto de partida é a grande estrutura metálica em forma de estufa que abriga o salão de degustação da vinícola BRICK BAY. Difícil é querer sair de lá.
Arabella Lane.
www.brickbay.co.nz
+64.9.245.4690
Vista da estufa e restaurante da vinícola Brick Bay.

Clooney
Sem dúvida a melhor refeição que fizemos. Num ambiente bem noturno, com sofás arredondados, de luz baixa e grande espaço entre as mesas, a casa oferece menu degustação de vários pratos, com ou sem vinhos. O melhor prato de carne em longa data vinha com emulsão de barbecue e timo empanado com alcachofras de Jerusalém, e a melhor sobremesa da viagem era a panacotta de chá verde, figos desidratados, caqui, sorvete de anis com vinagreira, cubos de kiwi e chips de anis. O segredo? A escolha de ingredientes na safra.
www.clooney.co.nz
33 Sale St
+64.9.358 1702

Depot
A costela de boi assada coberta de especiarias, cuja carne se desprende do osso e cola na memória, é obrigatória. Pode ser acompanhada de um dos 28 vinhos em taça e devorada no melhor balcão da cidade. Além do balcão, as mesas de bancos altos, abastecidas por garçons atenciosos, cheios de “atitude” e simpáticos, também recebem ostras e mariscos de primeira. Aberto o dia inteiro.
www.eatatdepot.com.nz
86 Federal St
+64.9.363 7048



Federal Delicatessen
Al Brown, o restaurateur com dedo de Midas, que também é dono do Depot, criou a Federal Deli como homenagem às delicatessens judaicas de NY. Um lugar retrô e adorável, com música incrível. Tem boa seleção de cervejas e vinhos em taça e oferece wiener schnitzel de vitela de leite com sálvia, cachorros-quentes, sanduíches de pastrami, saladas de batata e adoráveis cheesecakes.
www.thefed.co.nz
86, Federal St.
+64.9.363 7184

Federal Delicatessen, uma alegria para adultos e crianças.
Inspirada nas delis judaicas de NY.
Tamarillo, o delicioso fruto,
nas mãos do orgulhoso produtor.
O mercado de Auckland é uma das
melhores pedidas de café da manhã.
Giapo
A sorveteria ganhou o prêmio de melhor sorvete artesanal da Nova Zelândia, usando 60% de massa de cacau orgânico na mistura do sorvete para lhe conferir leveza, e criando até 1.000 novos sabores por ano. Mergulhe em casquinhas encrustadas de amêndoas e chocolates, sabores cremosos e densos, coberturas que brilham. É um mundo de fantasia gelado.
www.giapo.com
279 Queen Street | perto do Civic Theatre
+64.9.550 3677

La Cygale Farmers Market
Considerado o melhor mercado de rua da cidade há muitos anos, é também uma excelente parada para café da manhã. Na entrada, o jazz tocado pelo saxofonista que arrematava uns trocados, precedia as inúmeras barraquinhas de fazendeiros, onde provei “tamarillo”, comprei provisões e parei para muffins, scones e os excelentes queijos e frutos neozelandeses, a preços de banana (sempre orgânica, como quase tudo no País).
www.lacigale.co.nz
69 St Georges Bay Rd, Parnell 

Mudbrick Vineyard & Restaurant
Num passeio de apenas 40 minutos de ferry até a Ilha de WAIHEKE, almoce no restaurante da vinícola MUDBRICK, no topo da ilha, saboreando o premiado “Velvet”, blend secreto do produtor. De um lado, os vinhedos se debruçam sobre o mar; de outro, o chef colhe ervas no campo para o seu almoço.
www.mudbrick.co.nz
126, Church Bay Rd. Waiheke Island.
+64.9.372.9050

A funcionária do restaurante colhe a lavanda para o nosso almoço.
Na vinícola Mudbrick, na Ilha de Waiheke.

Orphans Kitchen
É o “super-cool-bistrô-do-momento” na já badalada Ponsoby, rua onde tudo é e acontece no mundo gastrô. Despretensioso, com mesas simples e bancos altos, tem cardápio enxuto de 8 pratos. A papada de porco com alho poró carbonizado, couve de bruxelas e castanhas assadas garante o ticket da volta. Cervejas artesanais e vinhos da adega pessoal de Josh Helm, o sócio de 29 anos que ostenta um bigodão super “hip”, completam a fórmula de sucesso.
118 Ponsonby Road
+64.9.378 7979

Vinho no melhor estilo bordalês, da adega do pai do proprietário do Orphan's Kitchen.
Comida especialíssima, adega idem. 

Prego
É o tipo de lugar pra qualquer hora e qualquer fome e, portanto, ótimo pra famílias. Em plena Ponsonby Road, pólo gastrô de gente bonita, o serviço ágil e uma tradição de 28 anos já transformou a casa em uma instituição na cidade.
www.prego.co.nz
226 Ponsonby Road
+64.9.376.3095

Sidart
Sid Sahrawat, o chef, virou SIDART, o restaurante. Eleito em 2014 como o melhor chef pela Metro e melhor restaurante pela Cuisine Magazine, arrematou os dois prêmios mais cobiçados de Auckland. O menu degustação muda diariamente. Espetacular.
Three Lamps Plaza Level, 1/283 Ponsonby Rd.
www.sidart.co.nz
+64.9.360.2122

Soul Bar & Bistrô
Provar o mar é mais gostoso em frente à marina de Auckland, numa ampla varanda, vendo a cidade passar. Ideal para um almoço num dia de sol - não raro na cidade - , tem cardápio que agrada adultos e crianças, com peixes, frutos do mar, massas e boa seleção de vinhos.
www.soulbar.co.nz
Viaduct Harbour
+64.9.363 7184

Costela de boi com especiarias no Depot,
pra lamber os beiços no melhor balcão da cidade.





2 comentários:

  1. Fantástico. Dá vontade de tirar férias imediata ao ler esse post! Agora, eu achava que o venison x deer era igual a relação pig x pork: deer era o animal e venison a carne do animal servido. Lendo e aprendendo.

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    1. Também não sabia, Henrique! A parte que mais gosto das minhas viagens (depois do sabor) é a pesquisa! Beijo grande, Cris.

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.