Sem essa, de tragédia! - Lisboa



“Vestiu-se quase com devoção; foi-se florir e, fumando um charuto caro, dirigiu-se à Rua das Flores. Por um refinamento de voluptuosidade, não se apressava e ia gozando tudo devagar, o ar, o sol, as fachadas alegres, porque a tudo o seu amor transbordante lançava, sobre todas as coisas, como um reflexo amável.” 
Trecho de "A Tragédia da Rua das Flores", de Eça de Queirós.

Deixei o hotel naquela manhã de Outono, bocejando e sem rumo, determinada a não fazer absolutamente nada. Não... não faço planos no primeiro dia de viagem, graças àquele moedor de carne que convencionaram chamar de avião. Pois bem, tentei sair da pesquisa, mas a pesquisa esbarrou em mim. Tomei a primeira à esquerda e lá estava eu na Rua das Flores, uma das mais despretensiosamente gastronômicas da cidade.

Dado o antigo hábito de intitular ruas por sua “vocação”,  imaginei-a repleta de floristas ou canteiros coloridos espalhados pelas calçadas. Se assim foi um dia, eu cá não sei. Das belas plantinhas não se vê sinal ou aroma, mas isso não impede que outros perfumes, tão encantadores quanto, lhe tomem conta. 

Logo de início, avistei a TABERNA DA RUA DAS FLORES, a mercearia/restaurante que, desde sua inauguração, em 2012, recebeu inúmeras críticas elogiosas em guias locais e do resto da Europa. 


A expectativa deve ser calibrada pela proposta real da casa, que é a de ser uma taberna de pratos, vinhos e petiscos simples, que busca resgatar a tradição alimentar portuguesa, além de vender queijos, enchidos e azeites de qualidade. 

Um inglês, um francês, um alemão, um “sei lá que língua ele falava...” tomaram rapidamente o espaço acanhado de 14 lugares, e eram acomodados pela muito simpática e atenta equipe de salão. 


Reguei tudo com um vinho sugerido na lousa, da região de Lisboa, e comecei com um delicado queijo de ovelha com molho de pimenta dos Açores. O molho, interessante, forte e salgado, vinha com a pimenta bem curada pra sustentar o sabor etéreo do queijo. Adorei.


Esbarrei na felicidade na forma de "jaquinzinhos" (carapaus) empanados com migas de broa e feijão frade. A porção fartíssima a preços baixos faz com que se queira voltar todos os dias.


Para arrematar, um pudim de castanhas delicioso e firme, que dançou um tango enroscado em minha boca, com a calda abundante.

***

Dada a refeição generosa, procurei esquecer temporariamente dos apelos do estômago. Sem vergonha, mal saiu do restaurante, deixou-se seduzir pelo aroma enlouquecedor da primeira loja de Portugal dedicada exclusivamente a queijos, alguns passos adiante. Há queijos  portugueses e do resto da Europa, afinados lá mesmo para manter o público confinado... lá mesmo. 


O programa na QUEIJARIA pode ser fondue, raclette, coisa e tal no salão meio "Jetsons" dos fundos, acompanhado de um copo de vinho ou cerveja artesanal. Se estiver com pressa (ou muito pelo contrário), fique pela lojinha com seus vinhos, livros, utensílios e outros produtos que rimam com queijo, sem deixar de comprar um Serra da Estrela ou Azeitão, “se faz favor”, pra matar meu desejo. 

O Queijo de Azeitão teve origem em 1830, com um produtor que levou ovelhas leiteiras à região 

da Arrábida e todos os anos pedia que um queijeiro fosse lá reproduzir o Serra da Estrela, de sua terra natal. Ao longo dos anos, a receita original sofreu pequenas alterações e deu origem 

a este queijo, referência não só na região de Setúbal, como no mundo. 

***

Uns três passos pra lá ou pra cá, rua abaixo, fica a CONFEITARIA LANDEAU. A traficante vem com um sorriso discreto e lhe diz: "é leve". Sim, leve aerado, molhado, cremoso. Doce e amargo na justa medida. Você, inocente, se pergunta: que mal há? Quando a colher chega perto da boca, sinto dizer: você já se perdeu. O melhor bolo de chocolate em muito tempo.

***

Ainda não era hora, no entanto, de terminar meu romance com a Rua das Flores. Bem em frente à QUEIJARIA, já com sacolas e tal, outra loja clamou meu nome. Era a BY THE WINE, novo bar e loja de vinhos da José Maria da Fonseca. Gostei de tudo que provei no breve cardápio da casa, mas a grande pedida – ça va sans dire – está naturalmente engarrafada. 



Adorei meu Coleção Privada Domingos Soares Franco Moscatel Roxo Rosé 2014 (alegre e delicado, com toque de pêssego), mas duvido que quem me serviu tenha idade para bebê-lo... 

Quanto aos comes, devorei ostras de Espanha e salada de mexilhões, ambas excelentes, mas meu prato preferido foi uma das famosas conservas de José Júlio Vintém: escabeche de perdiz. Muito delicada.

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E uma de minhas lojas preferidas abriu, recentemente, uma filial na mesma rua. É a FÁBRICA COFFEE ROASTERS. Tomei lá um café Thirikwa Gakuyuini, do Quênia, torrado e passado no Chemex. E ainda outro de Rwanda, com aroma de arando, limão e noz moscada, no V60. Se nada disso faz sentido para você, não importa. Vá e peça um café, que vai gostar do mesmo jeito.




Ao fim do dia, devidamente estofada, feliz e atônita com tão belas esbarradas, me lembrei de um fado de Amália Rodrigues. Se flores não há na rua, pouco importa:
“Cheira bem. Cheira a Lisbooaaaaaa.” Siga seu nariz e seja feliz.


TABERNA DA RUA DAS FLORES
Rua das Flores 103, Lisboa, Portugal
+351 21 347 9418
fechado aos domingos
de segunda a sábado, das 11hs à meia-noite

A QUEIJARIA
www.queijaria.wix.com
Rua das Flores 64, Portugal
+351 21 346 0474
fechada às segundas
de terça a sábado, das 13hs às 22hs 
domingos, das 12hs às 20hs

BY THE WINE - José Maria da Fonseca
www.jmf.pt
Rua das Flores, 41-43
+351 21 342 0319
todos os dias, das 12hs à meia-noite

LANDEAU CHOCOLATES
www.landeau.pt
Rua das Flores, 70
+ 911 810 801
todos os dias, das 12hs às 19hs

FÁBRICA COFFEE ROASTERS
www.fabricacoffeeroasters.com
Rua das flores, 63
Todos os dias, das 9hs às 18hs



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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.