Depois de horas - um restaurante em Quito



[Texto feito para a Revista Época]

Mesmo antes de entrar pro negócio – e lá se vão 20 anos – já pesquisava e escrevia sobre restaurantes. Por isso, eu sei que não é fácil. Nadinha.


São meses de pesquisa, de criação do chef e sua equipe, de relação com os produtores e esforço logístico para que um único produto original possa chegar ao seu prato. É muito sacrifício, e o que acontece? Às vezes o cliente não liga a mínima... Vai estar no telefone, sem mastigar direito ou ainda olhando pra menina da mesa seis, e tudo bem.


O problema acontece quando bate a vontade de desabafar sobre todo aquele esforço. Nesse exato momento, alguns restaurantes se esquecem de puxar o freio e toda aquela montanha de trabalho invisível pode vir rolando encosta abaixo na direção do cliente, na forma de uma avalanche insuportável codinome “experiência”.


- Pero... Cómo con las manos? – perguntei. 

- Sí, porsupuesto!


Obedecia à instrução de pegar meu kimchi com os dedos, enquanto ouvi um “te gustó?”. 

Teria respondido ao garçom, não fosse o violento engasgo com o bacon de “cuy” – o porquinho da índia com jeito de hamster -, em tosse sufocante.


Tentavam me desentalar aos tapões enquanto eu, pimentão apavorado com lágrimas nos olhos, catava um copo d’água. 


A desesperança se instalou de vez quando percebi que era kombucha ou nada. Meu fim estava escrito, era certo, mas pensei em qualquer pessoa descrevendo a cena para meus filhos e adiei morrer, pelo ridículo da circunstância.


Chegou a hesitar, o rapaz que explicava os pratos, com meu óbito iminente, mas era homem com uma missão e o falatório não podia parar. 


Me lembrou o menino do cajueiro da praia de Pirangi, “o maior do Mundo”, que desembestava num texto decorado para os turistas e, quando interrompido, tinha de voltar ao início da história, uns 15 minutos para trás.


Mas comecemos do princípio...


Fazia uns 8 graus à noite e celebrava minha pontualidade em reservas, quando a recepcionista nos encaminhou até o segundo andar. Ensaiei uns passos até uma das mesas vazias, mas o dedinho da moça me interrompeu e apontou para um "lounge" no centro da sala, onde seis estranhos engoliam a chicha, bebida indígena muito interessante preparada desde o Império Inca. 


Nos olhamos brevemente e nos evitamos longamente naquele círculo de sofás. A mesa posta me espiava com o canto dos olhos. Fiquei sem entender a pausa. Havia um casal de retardatários do primeiro turno da excursão, mas o que eu não sabia era que estava num ‘ônibus’. 


Assisti o casal atrasado passar por tudo que passei e beber até o último gole de chicha – fermentada, explicada e tal. No fim, lá vinha a moça, de novo, trazer a vã esperança de um jantar. Ainda não. 


Era hora de subir até o terraço e encontrar o rapaz plantado na horta a céu aberto. Trazia sorriso e excitação tão transbordantes que eu deveria ter percebido que chegara ao cajueiro.

Negociada a língua comum ao grupo (o inglês), rumamos até um calendário agrícola quéchua pregado na parede e veio uma longa explicação que fez minha cabeça tomar um desvio até “será que deixei a torneira aberta?”. Não bastasse, nos sentaram no bar onde recebemos um livrinho, um lápis pra anotar impressões, e ainda uma caixa para escarafunchar a pseudo-terra e achar uma batata que supostamente aumentaria nosso laço com os agricultores. Sério?


Com o ciático já pinçado pela banqueta alta e o frio, manquei escada abaixo até meu posto, cobiçado desde o início. Por fim, vieram as explicações dos cinco pratos da noite: uma análise combinatória de 38 ingredientes, 15 modos de preparo e 18 procedências por cada etapa, que inviabilizou a conversa.


Foi difícil chegar à conclusão de que a comida estava ótima (e estava); passei muito tempo tentando engolir a experiência.


A cena não é privilégio do Equador ou de Quito. A cidade, aliás, é linda e segura, com riquíssima cultura (inclusive gastronômica) e um povo acolhedor e educado. Está nos Estados Unidos, na Europa, por todo canto.


Se, nos dias de hoje, os chefs podem dar seu recado em palestras, redes sociais, podcasts, revistas ou televisão, convém não abusar. Encontrar a justa medida da informação que eleva uma refeição, sem trombar com o prazer que o cliente tem que ter, é saber escolher o assento entre o bocejo e a glória.




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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.