- Por que a massa dos pães malteses é tão leve? - perguntei à amiga.
- Não tenho a menor ideia, mas acho que...
Estávamos a caminho dos templos de Ħagar Qim, quando ela decidiu parar a frase pelo meio, esticar o braço, pôr a mão no ombro do motorista e cuspir aquela língua difícil, mistura de italiano e berbere. Foi quase um cavalo de pau a manobra que mudou a rota. Era hora da fornada e não queria perder tempo.
Nos fundos da loja, uma sala clara e ampla, de reluzente branco farinha, me recebeu com um maltês desconfiado. Feitas as apresentações, a única palavra inteligível foi ‘Brasil?’, acompanhada de uma fungada surpresa.
A amiga nos deixou por instantes e fiquei lá, tentando engatar um italiano remendado com sorriso e mãos, que pouco adiantou. Era maltês ou nada. Vem o ajudante somali, de um negro lindo e puro, e ouço outro resignado ‘Brasil’, com um dedo apontando para mim.
Passado o micro-segundo de interesse com aqueles olhos aflitos de quem, mal tentou, já desistiu de derrubar a barreira da língua, encolheram os ombros e começaram a jogar pedaços de massa na fôrma.
- Ħobż tal-Malti? (pão maltês?), perguntei o único termo que tinha estudado.
- Le.
A negativa veio com movimento de cabeça e sobrancelhas que tombava para um imenso manto de massa num canto da sala, dormindo numa espécie de manjedoura. Aquele sim era o pão maltês e, se bem li o antebraço que fazia círculos no ar, esperava o dia seguinte.
Enquanto eu tirava a foto, a mão do padeiro enfarinha meus ombros e me guia até um forno que trazia a marca dos cavaleiros hospitalários: a cruz de Malta. Carrega mimicamente o manto imaginário, estende um fio com uma lanterna na ponta, pendura num gancho, abre a pesada porta de ferro e ilumina o interior. “Hemm” (lá). Dá as costas e volta a trabalhar.
Em 2002, a guerra civil na Somália levou mais de 2.000 refugiados até a pequenina Malta. A crise que vemos hoje em toda a Europa, começou lá, uma década antes. Quando aportaram, famintos, o governo lhes deu massa à bolonhesa, jogaram fora, depois sanduíches, que tiveram o mesmo fim. Só depois de perderem muita comida lembraram que os somalis eram muçulmanos e aqueles alimentos não eram halal. A maioria dos refugiados foi aceita.
O ajudante me oferece um pedaço do pão que tinham acabado de assar. Sorri, comemos juntos. Pensei na ironia de ter um muçulmano usando todos os dias um forno com o símbolo de uma ordem militar criada para defender o Cristianismo no mundo. E lá estávamos nós: um cristão, uma ateia, um muçulmano e o pão, alimento que pousa em qualquer língua, derruba qualquer fronteira.
Viva o pão.
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